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Carta de despedida ao amigo Johan Konings, por Álvaro Pimentel SJ

Pe. Álvaro Pimentel SJ

Querido amigo,

Nem pudemos nos despedir. Partiste de improviso. Estávamos desavisados, apesar de sabermos deste fato tão certo da vida. Ao despertar neste domingo, 22 de maio de 2022, lembrei-me do sábio Coélet, quando nos diz: “Lembra-te do teu criador, nos dias da tua juventude”. E buscando a causa dessa associação, não foi difícil compreendê-la, pois tu ouviste este apelo do sábio e viveste como humilde servidor do Evangelho de Jesus. Imaginei-te com teus olhos felizes, como quando descobrias novos sentidos para as palavras. E senti que dizias algo engraçado, como costumavas fazer quando eu te contava minhas intuições bíblicas. Deixei meu pensamento voar… Recordei-me então de quando pregavas o Evangelho. De como costumas fechar os olhos para ver… o hóspede da alma, a força que agia em Jesus e age em nós. Eras bem joanino também nessa importância do ver. Eu gostava de me deixar conduzir por ti nas trilhas das Escrituras, que conhecias tão bem depois de tanto viajar em estudos e encontros.

“Lembra-te do teu Senhor nos dias da tua juventude”, tempo indefinido de buscas e descobertas, de transformações da consciência, de contato com novos sentimentos e, acima de tudo, das surpresas do encontro com tantas pessoas, amigos e amigas, em forte acolhimento. Coração de estudante, disse o poeta cantor! Quando adoeci, por exemplo, não perguntaste o que eu tinha. Saíamos para caminhar após o almoço e conversávamos sobre as palavras, os prédios, a cultura das Minas… Eras um alento!

Penso em ti como o simples servidor, o erudito que sabia o que não sabia e deseja sempre aprender. O sonhador repleto de projetos e desejos, o homem inacabado e tranquilo com as próprias imperfeições, sem teatros de hipocrisia ou voz clerical impostada. Apreciavas a luz da razão, mas apenas como instrumento para aclarar os tesouros que descobriste. Eras o menino com uma lanterna na mão… Mas a luz dos teus passos, essa outra pequena luz que não mostra todo o caminho, apenas ilumina cada nova pegada, era mesmo a palavra de Deus em tua vida.

Por isso, volto ao texto de Coélet… “Lembra-te do teu Criador, antes que se rompa o cordão de prata e se despedace a taça de ouro, a jarra se quebre na fonte e a roldana se arrebente no poço, antes que o sopro retorne a Deus, que o concedeu” (Ecl 12 1.6-7). O fio se rompeu… E descobri que não nos separamos, que o laço da amizade se fez mais visível e forte. Uma de tuas amigas contou-me há poucos instantes que, em visita à sua casa, ao conversarem sobre o “sopro” da vida, ela compreendeu a verdade, pois “sim, a vida é um sopro, que nem é nosso, mas nos foi emprestada”. E disse-me ela que tu sorriste e aprovaste. Estavas mesmo próximo de devolvê-lo.

A taça de ouro se despedaçou… Fechei os olhos e imaginei os fragmentos como pequenas sementes. Eles vão se espalhar em teus alunos e alunas. Em quem lê teus livros. Em tua pena invisível nos textos bíblicos que traduziste. Estes, sobretudo, lançados como sementes nos corações em cada liturgia. Todos receberão teu trabalho e ninguém saberá que devem a ti o acesso às palavras da vida. Assim é o amor, querido amigo. A caridade é secreta em sua total gratuidade. Vivemos repletos de amor sem sequer nos darmos conta.

A jarra se quebrou na fonte… E a água fresca que tiraste do teu poço derramou-se em nossa terra seca. Teu sorriso me diz que não era tua esta água, mas água viva que no batismo recebeste e foi jorrando para todos. A roldana do teu poço se quebrou, em dia e hora inesperados. Mas sinto aquilo que te disse, enquanto acarinhava tua face fria no leito do hospital. Vamos nos reencontrar, o sopro da vida não cessa, apenas se transforma em brisa de eternidade.

Dizem que no Céu servem os vinhos das Bodas de Caná. Sei que irás gostar. E te imagino, enfim, com o Senhor de tua vida, ajudando-o a arrumar nossas futuras moradas.

Alvinho.

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