Pe. Jaldemir Vitório SJ
Desde o início da pandemia do covid-19, um oráculo de Amós, profeta bíblico do século VIII a.C., no longínquo Israel, martela na minha cabeça. Trata-se do capítulo 4, versículos de 4 a 11, onde o profeta elenca uma série de fenômenos naturais, entendidos como apelos divinos à conversão. O pastor-agricultor interpretava a realidade de maneira peculiar. A experiência de fé permitia-lhe ver para além das aparências e escutar Deus falando por meio do que chamamos “sinais dos tempos”.
Seus ouvintes eram pessoas religiosas que, embaladas numa falsa segurança, entendiam a prosperidade do momento (shalom) como sinal de bênção. Am 4,4-5 descreve o culto praticado por eles nos santuários tradicionais de Betel e Guilgal. Ali ofereciam sacrifícios de louvor e faziam oferendas voluntárias na intenção de agradar a Deus, quando Deus mesmo desautorizava tudo aquilo: “É assim que vocês gostam, filhos de Israel!” Em outras palavras: “Vocês estão felizes com esse culto que eu detesto. Esse tipo de agradecimento não me agrada!”
Qual o motivo da recusa divina em aceitar o culto zeloso dos fiéis? Por que incomodava tanto a Deus, ao invés de alegrá-lo? A consciência religiosa do profeta identificava o descompasso entre fé e vida, liturgia e justiça, comunhão com Deus e respeito ao próximo como origem da religião corrompida. O modo como tratavam os mais fragilizados da sociedade não correspondia às exigências da fé. Amós, falando em nome de Deus, denunciava os ricos piedosos sem meias palavras: “vendem o justo por prata e o indigente por um par de sandálias, esmagam sobre o pó da terra a cabeça dos fracos, tornam torto o caminho dos pobres, um homem e seu pai vão à mesma jovem para profanar o meu santo nome” (Am 2,6-7); “vocês oprimem os fracos e esmagam os indigentes” (Am 4,1); “eles hostilizam o justo, aceitam suborno, e repelem os indigentes junto à porta” (Am 5,12); “vocês fizeram do direito um veneno, e do fruto da justiça um amargor” (Am 6,12); vocês são “exploradores do necessitado, opressores dos pobres da terra” (Am 8,4). O profeta tem consciência de que injustiça e religião não se casam! Daí as palavras duras contra os agentes da maldade e sua religião distorcida.
As advertências do profeta tornaram-se palavras mortas. “Procurem o bem e não o mal; então vocês viverão” (Am 5,14), “odeiem o mal e amem o bem, restabeleçam o direito junto à porta” (Am 5,15), “que o direito corra como a água e a justiça como um rio caudaloso” (Am 5,24) são chamadas de atenção que indicam o caminho para se viver na fidelidade à fé dos pais. Como a injustiça se manteve intacta, não lhe coube senão anunciar o fim de uma sociedade avessa ao projeto de Deus. “Pela espada morrerão todos os pecadores do meu povo, aqueles que diziam: ‘A calamidade não avançará, não nos atingirá!’” (Am 9,10).
Amós tinha clara consciência de ter sido escolhido e enviado para falar em nome de Deus. “O Senhor tirou-me de junto do rebanho e me disse: ‘Vai, profetiza a meu povo, Israel’” (Am 7,15) marca o início de uma missão cumprida à custa de intolerância e perseguição. Entretanto, dava-se conta de uma forma diferente de Deus advertir o povo e chamá-lo à conversão: servindo-se de calamidades que atingiam a todos sem exceção. A fome, a seca, as pragas da lavoura, a peste e o terremoto (Am 4,6-11) deveriam levar o povo a refletir e se converter de seus maus caminhos, mormente da injustiça cometida contra os indefesos. Uma constatação repete-se após cada experiência de sofrimento e de morte: “Mas não voltastes a mim!” A dureza de coração dos promotores de iniquidade, com grandes tormentos para os pobres, impedia-os de se darem conta da inutilidade do culto prestado a Deus.
A falta de determinação para voltar ao bom caminho da justiça e da misericórdia levou Deus a marcar um encontro com seu povo. “Prepara-te para encontrar o teu Deus!” (Am 4,12). Quem não ouve Deus a falar pela boca de seus profetas e pelos “sinais dos tempos”, que se cuide!
Longe de considerar o covid-19 castigo divino, nos passos de Amós, levanto a suspeita de que poderia servir de alerta na atual quadra da história, onde o deus dinheiro gera corações insensíveis em face dos empobrecidos e marginalizados, dos migrantes e refugiados forçados, das vítimas das guerras, do narcotráfico e do tráfico humano, dos novos escravos, das minorias exploradas e tantos outros seres humanos cujos direitos fundamentais são negados e cujas vidas inocentes são ceifadas. A pandemia, enquanto “sinal dos tempos”, confronta toda a humanidade com a exigência de encontrar uma nova sabedoria de viver, alicerçada na fraternidade, no cuidado com os mais fracos, na defesa dos direitos dos pequenos e, como nos alerta o Papa Francisco, na atenção à sustentabilidade da Casa Comum. Quem se considera discípulo do profeta Jesus de Nazaré deveria se sentir questionado de maneira particular!
Cuidando para não cair nas ciladas dos falsos profetas, mais do que nunca somos conclamados a dar ouvido à voz lúcida dos cientistas, das lideranças sociais, políticas e religiosas, dos pensadores e daqueles que nos ajudam a atravessar com determinação esses tempos sombrios e dramáticos. Entretanto, a voz lúcida dos verdadeiros profetas tem uma impostação peculiar. Como o Amós de outrora, instiga-nos a discernir, nas entrelinhas de uma terrível pandemia, os apelos de Deus a nos conclamar para sermos mais humanos, mais fraternos e mais solidários. Enfim, cuidar melhor dos pobres, seus filhos prediletos!
Pe. Jaldemir Vitório SJ é professor e Diretor do Departamento de Teologia e de Assuntos Comunitários e Pastorais da FAJE.