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A pandemia e a manifestação do humano

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A pandemia e a manifestação do humano.

Clovis Salgado Gontijo

Diante do desafio de refletir filosoficamente sobre o complexo contexto desta pandemia, decidimos abordá-lo por um viés que a todos concerne, a saber, a sua dimensão antropológica. Em 1962, a filósofa norte-americana Susanne K. Langer publica, sob o título Philosophical Sketches, uma série de ensaios, nos quais apresenta relevantes traços distintivos e constitutivos do ser humano, fundamentais para a análise de questões como o conhecimento, a linguagem, o símbolo, a civilização e a sua crise. Curiosamente, podemos reconhecer alguns desses traços em nós, que hoje experimentamos nestes tempos de pandemia.

Em primeiro lugar, todos sabemos que vivemos uma experiência provavelmente inédita na história da humanidade: o isolamento simultâneo de diversas populações ao redor do globo. Para enfrentarmos tantas horas de forçada reclusão, também se encontram ao nosso alcance ferramentas inéditas, proporcionadas pelos meios digitais. Na relação com tais meios, evidenciam-se, obviamente, elementos da nossa identidade humana. Pensemos, por exemplo, no caso de uma videochamada, na qual expressamos a nossa humanidade pelo uso do refinado instrumento da linguagem. Entretanto, quando interagimos virtualmente com alguém do outro lado do mundo, ainda estamos respondendo, graças à nossa percepção ampliada pela tecnologia, a estímulos presentes aos quais podemos agir e reagir, capacidade que, em algum nível, muitos animais também possuem.

O ser humano não se restringe ao que o convoca aqui e agora. Como já aponta Kant, na Crítica da faculdade de juízo (§§ 76, 77), o nosso entendimento é capaz de distinguir, de maneira singular na cadeia dos seres, entre a realidade e a possibilidade. Tal capacidade é ressaltada pelo neokantiano Ernst Cassirer, como crucial para a sua concepção das formas simbólicas, acolhida e retrabalhada por Langer. Não só distinguimos esses dois níveis, mas precisamos transitar por ambos para sermos autenticamente humanos. Como diz a filósofa, “necessitamos viver na estrutura conceitual de um mundo maior do que o meio ambiente que percebemos sensorialmente”[1].

Trazendo essas palavras para a experiência deste confinamento, constatamos que não ocupamos as horas de espera e de temor somente com as notícias factuais. Muitos de nós só nos tornamos capazes de suportar algumas delas (como aquelas veiculadas pela imprensa), abastecendo-nos de fontes relacionadas ao que Langer e Cassirer compreenderam como o campo simbólico. É nele que se encontram o mito, a religião, a arte, a filosofia, assim como as formulações científicas. Mas qual seria a contribuição dos símbolos? Neste tempo pascal, por exemplo, não contamos com a figura do Cristo ressuscitado diante de nós, mas a narrativa evangélica dos discípulos de Emaús (Lc 21,13-35) ainda nos favorece uma aproximação à presença, ao mesmo tempo patente e evanescente, do divino nas nossas vidas. No caso da arte, a audição do Magnificat, de J. S. Bach, seja ela ao vivo ou reproduzida, não precisa nos conduzir a nenhuma ação específica, nem sequer à prece, uma vez que a sua apreciação não se limita a ouvintes cristãos ou religiosos. Contudo, o primeiro movimento de tal obra musical permite-nos “visualizar” fora de nós um sentimento contagiante de júbilo, que transborda as possibilidades expressivas das palavras. Logo, poderíamos brevemente concluir que os símbolos propiciam concepções das coisas, que, por sua vez, participam ativamente do modo como as apreendemos.

Uma relevante contribuição de Langer, hoje um tanto esquecida no meio filosófico, encontra-se na extensão das nossas concepções e formas articuladas para além do âmbito da razão e da linguagem discursivas (nas quais “enfileiramos” ideias). Também concebemos por narrativas míticas, por sacramentos religiosos, por obras de arte, que implicam outro processo de abstração, pelos quais estabelecemos analogias, sobretudo, com as nossas experiências interiores. Sugestivamente, neste momento em que a nossa relação com o mundo exterior se estreita, buscamos recursos pertencentes à dimensão simbólica, nas suas variadas manifestações. Deste modo, caberia questionar a célebre proposição de Wittgenstein, “os limites de minha linguagem denotam os limites de meu mundo” (Tractatus logico-philosophicus, 5.6), caso, nela, o termo “linguagem” se restrinja à linguagem discursiva. Mais em consonância com Langer, o confinamento nos mostra que são os limites, talvez ilimitados, de meu repertório simbólico os responsáveis pelo delineamento de meu mundo.

Assim, o cultivo, nestes tempos de pandemia, das formas simbólicas, em particular artísticas e religiosas, poderia indicar a amplitude do “mundo” humano. Em lugar de mero devaneio de indivíduos alienados, que se esquivam do seu compromisso político, como ironizou Nietzsche numa fase um tanto ressentida aos encantos musicais (O andarilho e sua  sombra, § 167), a arte – e também a espiritualidade – veicularia valioso e insubstituível conhecimento sobre nós, sobre os conteúdos e os ritmos dos nossos sentimentos. Tal possibilidade de expressar algo a respeito do mundo (externo ou interno) é outro atributo especificamente humano.

Vale ainda ressaltar que, ao ouvirmos ou ao interpretarmos uma peça musical, ao lermos um romance, ao assistirmos a um balé e ao adotarmos uma prática meditativa não só nos afastamos dos estímulos concretos que nos incitam à ação imediata, como também nos aproximamos a outros momentos da nossa história. Constatamos, empregando uma imagem de Langer, que cada um de nós é como uma folha, a compartilhar um mesmo tronco. Não estamos sozinhos, e a consciência de um passado que nos constitui é exclusivamente humana. Em frente aos nossos instrumentos musicais, caixas de som, livros e telas, recorremos hoje a um legado que nos nutre, como seiva, possibilitando-nos vislumbrar algo de uma humanidade intangível.

A presente crise conecta-nos aos homens e às mulheres do passado e do presente. Compartilhamos valores e anseios que também se evidenciam com esta pandemia. Para traduzir tais conteúdos impalpáveis do espírito humano recorremos, mais uma vez, a formas simbólicas. Muitos de nós comoveram-se diante da projeção que, no Domingo de Páscoa, vestiu de médico o Cristo Redentor, no Rio de Janeiro. Naquele símbolo, materializou-se a nossa concepção sobre valores como solidariedade, coragem, gratidão, resultante de uma significativa fusão de imagens que dificilmente seria obtida pelo meio verbal. O modelo de Cristo encontra-se com o profissional de saúde deste século, trazendo-nos confiança e esperança. Deparamo-nos aqui com o registro propriamente humano dos símbolos, pois, como esclarece Langer, “suscitar ideias uns nas mentes dos outros, não no curso da ação, mas no da emoção e da memória – ou seja, em reflexão – equivale a comunicar acerca de alguma coisa, e isto é o que nenhum animal faz.”[2]

Estabelece-se, por conseguinte, uma diferença essencial entre o símbolo e o signo, cujo uso, por sua vez, não é exclusivo à humanidade. O signo, na distinção estabelecida por Langer, não formula uma concepção, mas impele à ação, como sintoma ou indicativo (natural ou artificial) de um evento maior e mais relevante. A tosse é signo, como possível sintoma da infecção, que nos leva a intensificar o isolamento ou a buscar auxílio médico. No entanto, apenas por meio dela, não concebemos o estado interior do doente ou a estrutura física do novo coronavírus, que, como concepção da ciência, também implicaria, para Langer e Cassirer, um elemento simbólico, para além da pura observação.

Retomando a distinção kantiana, somente o símbolo é capaz de se descolar do real e lidar com o possível. É também graças a tal descolamento que nos ocupamos com o futuro, vinculando-nos à nossa posteridade. Explica Langer que, embora nos caracterize o desejo de autorrealização no nível do indivíduo, ou seja, o propósito de “viver o mais possível em nosso breve período de duração”[3], sabemos que a riqueza individual é ainda muito pouco. Inevitavelmente, continuaremos minúsculos como individualidades. Assim, torna-se premente, para a nossa mais plena realização humana, a ligação com o tronco, com os outros galhos, com as folhas que ainda não brotaram dessa gigantesca árvore humana. De algum modo, a consciência do vínculo parecia um tanto esquecida antes da pandemia. Para muitos, era como se a acumulação própria, material ou intelectual, fosse-lhes suficiente. A crise sanitária aponta para o risco de a desmedida exploração do Planeta e a aviltante desigualdade social afetarem a continuidade biológica e a dignidade ontológica da humanidade. Nesse sentido, não é por acaso que formulamos, no momento presente, as seguintes questões: Qual é a minha verdadeira vocação no mundo? Como poderei contribuir para uma realidade mais justa, agora e depois da pandemia?

Nestas perguntas, afastamo-nos do estreito campo das percepções reais e migramos para o possível, como também ocorre com o filósofo político que constrói a sua utopia. A crise e tudo o que ela denuncia despertam e renovam ideais em nós. De acordo com Langer, os ideais são com frequência impossíveis nas condições atuais, mas nada nos impede de pensarmos em (como) alterar tais condições a fim de concretizá-los.

Deste modo, algo da nossa humanidade põe-se à mostra ao longo da pandemia. No isolamento, reconhecemos a necessidade de nos nutrirmos de amplo repertório simbólico, que caracteriza o nosso “mundo” genuinamente humano. Pelo contato com tal repertório, conectamo-nos com o fictício, o poético, o religioso, eixos que extraem o ser humano da sua experiência mais imediata. O deslocamento do real também se confirma com o nosso sentimento de pertença a uma tradição. O vínculo do ser humano com gerações fisicamente ausentes manifesta-se igualmente em direção ao futuro, em considerações sobre a melhor forma de habitar a Terra. No compromisso com a continuidade do mundo e da humanidade, que pressupõe a responsabilidade com o presente, verificamos a insuficiência da autorrealização e sentimos a necessidade de cultivarmos um “sentimento de envolvimento”[4] com a sociedade e o meio-ambiente. Se a pandemia vem desvelando estes e outros traços fundamentais do humano, esperamos que, a partir dela, também sejamos capazes de aprofundar a nossa humanidade.

 

Clovis Salgado Gontijo é professor do Departamento de Filosofia da FAJE. Dedica-se a temas como a Filosofia de Música, às poéticas noturnas e às intereseções entre Mística e estética. 

 

[1] LANGER, Susanne. Ensaios filosóficos. Tradução revista por: José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1971. p. 119.

[2] LANGER, Op. cit., p. 55.

[3] LANGER, Op. cit., p. 108.

[4][4] LANGER, Op. cit., p. 110.

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