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Carta ao amigo que se foi

Querido amigo, partiste de repente.

Havias retornado à nossa comunidade para ser cuidado e recuperar-te, mas já era tarde… Tenho meu coração vazio e triste por tua ausência. Mas sinto também gratidão, porque antes de tua partida, pude dizer-te, em várias oportunidades, como tua amizade era importante para mim. Também porque fui o último a tocar com amor o teu corpo já inerte, enquanto tentava reanimá-lo… em vão. De joelhos, dei-te a última absolvição, fechei teus olhos e rezei (ou rezamos juntos?) o Símbolo dos apóstolos, a ave-maria e o pai-nosso. Sabia que estavas morto, mas sentia que estavas vivo, silenciosamente, vivo… Obrigado, amigo.

Sempre estimei a tua presença discreta e ponderada. Costumava brincar, dizendo que um dia me tornaria sábio como tu, dessa sabedoria mineira, simples e despretensiosa. Quando estudantes, tu já teólogo e eu filósofo, eu te admirava em segredo, como ao irmão mais velho. Gostava de participar das orações comunitárias que animavas, pois, no teu turno, cantávamos os salmos e outras canções. E havia calma e tranquilidade para orar.

Convivemos longos anos, na comunidade Belarmino, sempre com parcimônia de palavras e gestos. Pouco a pouco, compreendi que tu os guardavas para ocasiões especiais. E me presenteaste com algumas mensagens de encorajamento ou agradecimento. Mas o melhor de nossa amizade, para mim, consistia na grande confiança que tu me inspiravas. Isso me permitiu submeter ao teu juízo várias questões, tanto pessoais quanto institucionais. Nunca me interrompeste, enquanto eu falava, tampouco foste precipitado em interpretar o que te dizia, sem antes perguntar-me se me havias compreendido bem. Tuas respostas eram breves e lúcidas, ilustradas por uma passagem das Escrituras ou dos santos padres. Sem esses diálogos privados, eu teria me equivocado tantas vezes. Obrigado, amigo!

Quando adoeci, certa vez, eu me sentia muito assustado. Tu me escutavas, sem nunca dizer palavra inconveniente. Ainda hoje, os amigos de Jó circulam pelo mundo. Mas tu, com a sabedoria que o próprio Jó havia obtido de suas provações, me confiavas alguma de tuas dores para dizer que me compreendias, que eras humano como eu… e arrematavas sempre com a mesma frase: Deus é maior!

Imagino o quanto seria desgastante para ti a convivência com alguns de nós. Mas, sobretudo, com o ambiente de fábrica para o qual a vida acadêmica vem sendo empurrada nos últimos anos. Pudemos conversar a esse respeito algumas vezes; e o que mais te espantava, com a erudição que já havias adquirido, era a falta de conteúdo de muitos “produtos”, como se diz hoje em dia. Mas há esperança, na resistência e no trabalho sério de tantos, continuavas. Numa de tuas últimas mensagens, afirmaste: “o meu carisma é o estudo, a pesquisa e a docência. Gosto de trabalhar nos bastidores”. Tua atuação como professor, orientador de estudos, diretor de teses e editor da Perspectiva Teológica (e até simples revisor das provas tipográficas) foi exemplar. A cada novo número da revista, dizias ter “experiência de paternidade”. Nas aulas, com teu estilo e teus limites, suportavas com paciência a presunção de alguns alunos, que talvez não soubessem das longas horas de preparação contidas em cada aula que davas.

Os últimos anos foram difíceis, tiveste de assumir a função de coordenador de nossa comunidade, cargo para o qual dizias não ter sido talhado. A obediência pesou sobre teus ombros e o desgaste se acumulou. Teu sono leve foi afetado e a insônia te maltratou. Encontrei-te mais silencioso e sensível, mais resguardado e triste, quando regressei a Belo Horizonte, no ano passado. A pandemia explodiu e tuas energias se dissipavam. No final de 2020, foste desligado da Faje. E eu não encontrei qualquer agradecimento oficial, após tantos anos de trabalho entre nós. Estarei enganado? Mas me disseste que, ainda assim, te colocavas à disposição do Provincial para retornar à Faje ou para trabalhar em alguma outra IES da Companhia, no futuro.

No início de fevereiro deste ano, foste enviado para a Paróquia São Francisco Xavier, mas a decisão logo se mostrou equivocada. O confinamento desgastou-te e as poucas energias que te restavam se exauriram. E partiste de repente…

Volto a dezembro de 2020. Enquanto eu relia o livro dos Salmos e tu ainda estavas por perto, comentamos vários versículos desse tesouro de sabedoria, aclarados por teu mestre Santo Agostinho. Cito dois, que nos detiveram mais. Recordei-os hoje e eles me iluminaram, apesar da dureza e da exigência dessas palavras: “mas quando eu vacilei, eles se alegraram e se reuniram (…) contra mim (…) dilacerando-me sem parar” (Sl 35,15). Aqui conversamos sobre a violência que se abate contra os vulneráveis. E chegamos à conclusão de que a máxima fragilidade foi vivida por aquele que amou até o fim. Tu eras vulnerável e frágil, porque feito a partir do barro. E assim, sofreste violência daqueles que olham do alto, como se fortes fossem.  Mas também vivias a vulnerabilidade da caridade. Recordo-me das vezes em que me corrigiste, dizendo-me, “quero pedir-te algo, mas sem faltar com a caridade”. Não te impunhas. Tua morte me fez compreender que o amor é exigente, que ele pede alguma agressividade, na forma da denúncia, por exemplo. Tu não possuías este carisma, e, também por isso, silenciavas ou evitavas o conflito.

No entanto, possuías, entre outros dons, algo precioso que ainda espero aprender. Diz o segundo versículo, que nos deteve em rica reflexão: “Deus é nosso refúgio e nossa força, / um socorro sempre alerta nos perigos. / E por isso não tememos se a terra vacila, / se as montanhas se abalam no seio do mar; / se as águas do mar estrondam e fervem, / e com sua fúria estremecem os montes” (Sl 46,2-4a). E eu te perguntava: quem pode viver assim? Tu confiavas no Senhor! A ponto de te lançares ao mar, quando te enviaram, embora sentisses que não tinhas fôlego. E as ondas te submergiram…

A misericórdia de Deus, abre os caminhos do perdão. E o perdão, dizem, transforma a terra estorricada em solo fecundo. Antes do perdão, porém, está a ferida. E antes, o fogo da violência, muitas vezes frio como as leis e as decisões sem espírito que, em consequência, são inquestionáveis. A violência que nos desune; e que precisamos aprender a combater, sem mais adiar.

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