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“Volta ao teu coração”

“Volta ao teu coração”

 

Paulo César Barros SJ

Nesses tempos de quarentena, estamos limitados em nosso direito de caminhar livremente pelas ruas. Tal situação pode causar em nós insatisfação, desespero e angústia; porém, o ensinamento dos teólogos antigos nos oferece uma excelente porta de saída.

Se, no presente, não podemos caminhar “para fora”, porque não tomar o caminho que nos leva “para dentro” de nós mesmos, isto é, para o nosso interior, para o nosso coração? Nessas semanas, tem voltado à minha mente uma das inúmeras exortações de Santo Agostinho em suas homilias: “Volta ao teu coração” (Sermão 13,3). É o Santo de Hipona como que a nos dizer: “Volta ao teu interior!”; “Busca o que tens dentro de ti!”; “Foge das exterioridades que te levam à dispersão, unifica-te em ti mesmo!”.

Há tempo para tudo (cf. Ecl 3,1). O tempo presente é de silenciar, parar, não só os movimentos exteriores e mecânicos, mas também é momento de serenar os movimentos interiores, para que deixemos Cristo, o Mestre Interior, falar aos nossos corações. É tempo de purificar a nossa alma de tudo que seja poluição íntima, praticar uma espécie de exorcismo interior: expulsar os nossos “demônios internos” que dificultam ao Senhor vir até o profundo de nossas existências.

Vivemos num mundo cada vez mais barulhento: músicas estridentes, inúmeras postagens de vídeos pelas redes sociais, novelas de televisão que consistem em mero falatório, reuniões que mostram ser uma sucessão de discursos sem que os participantes tenham disposição para ouvir etc. O tempo presente, justamente por conta das dificuldades que todos estamos a vivenciar, pode nos sugerir a busca da harmonia dentro de nós mesmos, do equilíbrio almejado por nosso “coração inquieto” (cf. Santo Agostinho, Confissões, livro 1). E é no mais profundo de nós mesmos que encontramos a Deus: no coração humano encontra-se Deus como interior e superior (cf. ibid., livro 3).

Nesses tempos, em que somos chamados a silenciar externa e internamente, é dada a nós a oportunidade de redescobrirmos, em nossas liturgias, o valor do método mistagógico dos Padres da Igreja. O que esses grandes mestres cristãos da Antiguidade nos ensinam é justamente o seguinte: partir da exterioridade dos gestos e símbolos litúrgicos e chegar ao profundo dos nossos corações, abrindo-os à graça de Deus para que sejam transformados, rejuvenescidos. Trata-se de uma verdadeira peregrinação que cada fiel, na vivência da comunhão eclesial, é chamado a realizar para dentro do santuário de sua própria interioridade.

Hoje estamos impedidos, em nossa tradicional prática eclesial, de nos reunirmos para a celebração comunitária dos sacramentos. Tal situação causa dor em todos nós: fiéis e pastores. Todavia, com otimismo e confiança em Deus, assumamos com serenidade essa provação, na certeza inabalável de que voltaremos a nos reunir em nossas igrejas, quiçá menos voltados para nossos interesses e egoísmos, como quem “faz negócio” com Deus, para que busquemos nada além do que a glória do Altíssimo e a purificação do nosso interior. Cantaremos então, a plenos pulmões, as misericórdias do Senhor, d’Aquele que é sempre fiel e nunca nos abandona.

A liturgia do tempo pascal nos oferece a oportunidade de ouvir, em três ocasiões distintas, o belo relato da caminhada dos discípulos de Emaús, no evangelho de Lucas (Lc 24,13-35). Feita a experiência do Ressuscitado, os discípulos testemunham “o que tinha acontecido no caminho” (Lc 24,35a). Vale dizer, foi na dinâmica de caminhar com o Senhor, ouvir a sua voz, aprender dele, o Mestre por excelência, que os discípulos vivenciaram a sua ressurreição. Fazendo calar suas preocupações e pretensões mundanas – “Nós esperávamos que Jesus, o Nazareno, fosse libertar Israel” (Lc 24,21a) –, os discípulos de Emaús passam a ouvir o Senhor. Portanto, é voltando-nos ao nosso coração, peregrinando para o interior de nós mesmos, que encontraremos o Senhor Ressuscitado, fonte de vida nova e plena. Não se trata de entender racionalmente quem é o Ressuscitado, mas de experimentar a sua presença cordialmente. E é realizando essa peregrinação interior que encontraremos disposição e coragem para seguir avante em nosso caminhar nesse mundo, provados, mas não derrotados, em busca da autêntica felicidade a ser encontrada no repouso da Pátria definitiva.

Paulo César Barros SJ é professor do Departamento de Teologia da FAJE.

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