Geraldo De Mori, SJ
“Todos se desviaram, corromperam-se todos juntos. Não há ninguém que faça o bem, nem um sequer” (Rm 3,12 // Sl 14,3)
Circulou recentemente nas redes sociais uma presumida entrevista dada ao Jornal o Globo por Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, líder do Primeiro Comando da Capital (PCC). Comprovou-se depois que o texto era de Arnaldo Jabor, publicado no Globo e no Estadão em maio de 2006. O texto, muito bem escrito, faz um diagnóstico do que resultou do abandono ao qual foram relegados durante anos os mais pobres das vilas, favelas e aglomerados urbanos do Brasil. Segundo o autor do texto, um desses resultados foi surgimento de um novo ator social: as facções criminosas, que se enriqueceram graças ao tráfico de drogas, controlando presídios e atuando em várias instâncias da sociedade, com relações com políticos, empresários, forças de segurança.
Apesar do fato de que a entrevista era falsa, sua difusão aconteceu alguns dias depois dos ataques ocorridos no Rio Grande do Norte, promovidos pela Facção Sindicado do Crime, e dos ataques previstos pelo PPC contra personalidades políticas, revelados pela Polícia Federal. Mais do que nunca o texto de Arnaldo Jabor ganhava atualidade, como quando foi publicado, mostrando um dos efeitos perversos do esquecimento e abandono, por parte do Estado e de suas políticas públicas, de uma parcela enorme do povo brasileiro, que sente e sofre, física e mentalmente, dia após dia, violências de todos os tipos e graus.
As origens remotas dessa violência “sistêmica” encontram-se no processo de colonização, que destruiu o modo de vida dos povos indígenas e escravizou os negros trazidos da África como força de trabalho da empresa econômica e comercial da então colônia lusitana. A independência do Brasil não trouxe mudanças significativas para as populações sujeitas à escravidão, que só foram libertas no final do século XIX, sem, no entanto, conhecerem a verdadeira cidadania e reconhecimento. As estatísticas sobre as populações prisionais são reveladoras a esse respeito, pois indicam que grande parte dos presos são descendentes das culturas que foram subalternizadas na história do país.
O texto de Arnaldo Jabor, que circulou recentemente nas redes sociais como sendo a entrevista feita pelo jornal o Globo com Marcola, é extremamente pessimista. Perguntado sobre qual seria a “solução” para o país, o presumido traficante diz, “não há mais solução”, a “ideia de solução já é um erro”. A possível “solução” demandaria muito dinheiro, um “governante de alto nível”, com uma “imensa vontade política”, “crescimento econômico, revolução na educação, urbanização geral”. Apesar dos avanços significativos ocorridos no Brasil desde então, o problema de fundo continua. A violência é cotidianamente recriada na base, sofrida e replicada, sobretudo, pelos mais pobres, que vivem nos rincões do país e em suas imensas periferias urbanas. O número de jovens que continuam sendo arrebanhados para as facções, reproduzindo a situação, é assustador, sem contar a aparente falta de alternativas, com a sensação de não saída.
A violência experimentada no cotidiano pelas populações mais pobres do país, com destaque para os afrodescendentes e os indígenas, ganhou novo significado com a polarização que marca o Brasil desde as jornadas de maio de 2013, tendo-se acentuado entre 2018-2022. Para alguns grupos sociais, só se pode frear a violência recorrendo à
violência, sobretudo frente àquelas pessoas que pensam diferente. Não por acaso, o “politicamente incorreto” tornou-se a moeda comum desses grupos, traduzindo-se em aumento da violência contra os segmentos mais vulneráveis da população, que têm sido os mais estigmatizados, por sua condição social e étnica, por sua opção sexual e política.
Muitos brasileiros desistem do Brasil, migrando para outros países, onde buscam encontrar melhores condições de vida. Outros continuam só explorando o país, seus recursos hídricos, minerais, vegetais e animais, nunca de fato “conhecendo” o Brasil. A grande maioria continua acordando todo dia, indo ao trabalho, educando seus filhos segundo princípios de civilidade e humanidade, no anonimato do cotidiano, protegendo-se como pode, descobrindo brechas para não sucumbir à barbárie. Sua resiliência é, certamente, o que torna possível ainda se falar em projeto de nação ou em sociedade brasileira. Sem esses milhões de anônimos, que vencem no dia a dia a violência, o Brasil já teria desaparecido. É das pequenas soluções de sua capacidade de resistir que pode vir a esperança de que algo poderá mudar. Talvez não segundo certa ideologia ufanista de nação, criada pelos que sempre dominaram o país, mas segundo o realismo do possível, que o cotidiano aponta, e que, talvez, seja o que pode de fato fazer advir o novo.
Esse realismo da resiliência do anônimo é o mesmo que Jesus antevia na dinâmica do reino de Deus, que, segundo ele, é como “alguém que lança a semente sobre a terra. Quer esteja dormindo ou acordado, de dia ou de noite, a semente germina e cresce, sem que ele saiba como” (Mc 4,26-27). Se a semente da violência, que perpassa a história do Brasil, parece não só crescer e contagiar todo o corpo do país, as defesas desse organismo vivo chamado Brasil, também agem, contra-atacando ou resistindo. Na labuta e na resiliência do anônimo, que compõe a grande maioria da população brasileira, se gesta a reação, na maior parte das vezes também anônima, de resistência, de defesa e de combate à doença da violência. Algo parecido um profeta, muito anterior a Jesus, percebeu no povo de Israel submetido ao cativeiro na Babilônia. Ele viu nele a figura do Servo Sofredor que traria a esperança de libertação para todo o povo de Israel.
Ao ingressar, com Jesus, em Jerusalém, a Igreja inicia, no Domingo de Ramos, o caminho que supera a violência. Identificado com o Servo Sofredor apresentado no Dêutero-Isaías, Jesus mostra que a vitória sobre a violência passa pela não violência ativa. Ele não teme enfrentar os representantes da religião de seu povo, que haviam transformado “a casa do Pai em um covil de ladrões”, manipulando a religião para fins econômicos e políticos. E não teme tampouco o juízo do representante do império, que não hesita entregar o inocente, para assegurar uma “pax romana” decadente e injusta.
Acompanhar Jesus no seu caminho de humilhação e desfiguração, sua “via crucis”, é deixar-se afetar não somente pela violência que sofre o inocente, mas pela vitória da não violência ativa sobre os que aparentemente venceram Jesus e seu projeto de tornar próximo o reinado do Pai no meio dos seres humanos. Esse acompanhar é um apelo a contemplar, como fez o Centurião Romano, que, ao ver como ele “morreu”, identificou no caminho da paixão o caminho do “Filho de Deus” (Mc 15,39). Ao celebrar mais uma vez a paixão de Cristo, como dizia Leonardo Boff em uma de suas obras, é necessário também aprender a perceber nela a “paixão do mundo”, descobrindo nessa paixão a vitória da não violência, a vitória de Deus. Nessa contemplação, os fiéis podem também descobrir não só como enfrentar a violência e o desespero da falta de solução, mas motivos para resistir, esperar contra toda esperança, colocando gestos que façam
advir o reino de Deus, do pequeno grão de sua resiliência e resistência, não se deixando mover pela violência, mas do coração da violência, vencendo-a com o que a interrompe.
Geraldo De Mori, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
