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200 anos de independência: para quem?

Élio Gasda SJ

Vida em primeiro lugar! O lema do 28º Grito dos Excluídos não deve ser lembrado apenas por um dia. É tema obrigatório para reflexão diária no processo de construção de uma sociedade mais justa. O Grito não é partidário, ao contrário, é uma manifestação popular, plural, oportunidade de propor mudanças, principalmente neste ano eleitoral mais decisivo da nossa história.

O contexto exige uma celebração crítica do Bicentenário da Independência.

Nunca foi tão importante Gritar Independência ou Morte! Duzentos anos se passaram e o Brasil mantem estruturas arcaicas colonizadoras. O atual governo impõe uma ditadura da economia acima da vida e um fundamentalismo religioso exclui e extermina. Além disso, afronta direitos humanos e imprime sua mentalidade machista, homofóbica e racista. Uma elite que se agarrou ao poder e explora o preto, o pobre trabalhador. Uma economia que concentra riqueza e gera desigualdade, exclusão e fome.

O relatório do Riqueza Global/2021 aponta que a 1% da população mais rica do Brasil detém quase a metade da riqueza nacional, 49,6%. Parte dessa riqueza decorre de impostos não cobrados sobre as altas rendas e heranças, acumuladas no processo histórico de colonização. Elite branca, misógina e racista.

A população em geral sempre esteve abandonada. Os povos negros, quilombolas, indígenas, as mulheres, os LGBTQIA+, as populações periféricas, rurais e em situação de rua nunca viveram a tal independência. Conhecem a morte, pois foram abandonadas pelos poderes da república. A elite continua escrevendo a história do Brasil.

Como falar de independência se a fome avança pelo país? Mais da metade da população brasileira (58,7%) convive com a insegurança alimentar. Em 2022, apenas 4 em cada 10 domicílios mantem acesso pleno à alimentação (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional-PENSSAN). A fome e a pobreza têm cor e gênero: 65% dos lares mantidos por pessoas pretas ou pardas convivem com restrição alimentar. A fome atinge 19,3% dos lares mantidos por mulheres, contra 11,9% dos mantidos por homens. O machismo refletido na desigualdade salarial entre homens e mulheres está na origem dessa discriminação. Elas recebem 20,5% menos.

Mulheres! São elas as que mais lutam pela verdadeira independência. Trabalham mais e recebem menos. São a maioria das pessoas desempregadas: 11,6% contra 7,5% dos homens, no segundo trimestre de 2022(IBGE). Se for negra a situação piora ainda mais. Elas recebem, em média, 42% menos que as brancas e são a maioria no trabalho informal. Em 2021, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil registrou um estupro a cada 10 minutos, um feminicídio a cada 7 horas. As negras representam 62% das vítimas. Sem representatividade política, elas sofrem com a falta de políticas públicas.

Os brasileiros ainda lutam e morrem por independência territorial. A Comissão Pastoral da Terra registrou em 2022, 25 assassinatos decorrentes de conflitos no campo. Em 2021 foram 36. Fazendeiros, garimpeiros, petroleiros, madeireiros, agentes imobiliários, com o apoio do governo federal não medem esforços para tomar de assalto o local de pertencimento dos povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos. Lugar de tradição, de cultura, de sacralidade, onde as relações e a vida se concretizam. Espaço de preservação e cuidado ambiental. O Brasil continua marcado pelo trabalho escravo.

Um povo vítima de uma economia que mata, resultado de uma corrupção histórica e endêmica. Não há projeto de desenvolvimento humano, integral e sustentável. O projeto é dar aos ricos e tirar dos pobres.

Em ano de eleição o desafio é gigantesco. “É necessário o compromisso autêntico com a verdade, com a promoção de políticas de Estado capazes de contribuir de forma efetiva para a diminuição das desigualdades, a superação da violência e a ampliação do acesso a teto, trabalho e terra” (Mensagem ao povo brasileiro/CNBB).

O povo deve descer da arquibancada, deixar de ser plateia e mudar o jogo. Mudanças são possíveis quando vêm de baixo para cima. Só o voto não muda o país. Contudo, uma eleição pode ser o caminho para o desenvolvimento de estratégias que se concretizem em transformações sociais. Só assim o Brasil será uma nação soberana, justa e democrática. A cidadania é um exercício diário.

Não se pode ser cristão e se manter indiferente ao desemprego, à fome, à inflação, ao abandono dos pobres e à destruição da Amazônia, do cerrado, do Pantanal, das montanhas de Minas. São mais de 700 mil mortos pela pandemia, são milhões os desempregados, são incontáveis as vítimas da violência. O capitalismo é incontrolável.

O Bicentenário da Independência coincide com um presidente de extrema direita condenado pelo Tribunal Internacional Permanente dos Povos por crimes contra a humanidade. O Tribunal Penal Internacional (Haia, Holanda) recebeu seis denúncias que acusam o mandatário brasileiro por crimes contra a humanidade, de genocídio indígena e destruição do meio ambiente.

Após duzentos anos, que país queremos construir?

“Para ser pátria amada, não pode ser pátria armada” (Dom Orlando Brandes).

Sejamos construtores de esperança, de paz e de justiça!

Élio Gasda SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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