Elton Ribeiro,SJ e Luiz Sureki, SJ
Vivemos tempos em que as grandes virtudes parecem ter perdido o brilho. Fala-se de coragem, justiça, prudência, fé ‒ mas quase sempre como palavras gastas, slogans de um ideal moral que se tornou distante. Elas são as colunas visíveis da vida ética, os pilares que sustentam a casa do humano quando tudo ameaça ruir. No entanto, há um outro alicerce, mais discreto e invisível, sem o qual nenhuma grande virtude subsiste: as pequenas virtudes.
Em nossas conversas informais pelos corredores da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), costumávamos brincar com a ideia de escrever um “grande tratado das pequenas virtudes”. Naturalmente, o título seria uma espécie de inversão criativa e ousada do livro intitulado “Pequeno tratado das grandes virtudes”, do renomado pensador André Comte-Sponville (3ª edição 2016). Se das grandes virtudes o tratado é “pequeno”, menor ainda haveria de ser um “tratado das pequenas virtudes”. Justamente por isso o título “grande tratado das pequenas virtudes” conservava um tom irônico.
Não tão irônico, na verdade! Afinal, no fundo, ele revela um contraponto necessário de perspectiva: o que é pequeno não é, por isso, menos essencial; talvez sejam precisamente as pequenas virtudes ‒ essas discretas expressões de humanidade que costumam passar despercebidas ‒ que sustentam o edifício moral e espiritual da vida comum.
Escrever um “tratado das pequenas virtudes” seria, pois, um modo de confessar que há sabedoria na modéstia, grandeza na simplicidade, e uma ética inteira nas minúcias do cuidado. Seria um convite a pensar o bem não como exceção heroica, mas como prática doméstica, contínua, quase imperceptível ‒ aquela que acontece quando ninguém observa. Talvez não tenhamos ‒ por vários motivos ‒ condições de escrever propriamente um tal tratado, mas podemos, isso sim, escrever um sincero elogio, como um exercício de gratidão, às virtudes menores.
As pequenas virtudes ‒ atenção, delicadeza, gratidão, pontualidade, escuta, sobriedade, discrição, constância ‒ não fazem ruído. Não aparecem nos discursos oficiais nem nas biografias heroicas. Não constroem sistemas, não inspiram reformas, não movem multidões. São como o cimento entre as pedras: não se vê, mas tudo desabaria sem ele. As grandes virtudes iluminam; as pequenas aquecem. As primeiras dão forma e estrutura; as segundas conferem densidade vital. As grandes podem ser pensadas; as pequenas, apenas vividas.
Simone Weil dizia que a atenção é a forma mais pura da generosidade. Essa é talvez a melhor definição do que são as pequenas virtudes: gestos de presença silenciosa que permitem que o outro exista. São virtudes da sombra, e não da ribalta; do cotidiano, e não do extraordinário. Pertencem à ordem do que é essencial sem parecer importante. Nelas, o bem não se afirma, mas se insinua ‒ como a brisa que refresca, não o vento que devasta.
Essas virtudes pequenas não se ensinam por doutrina nem se transmite por preceito. Aprendem-se no convívio, na atenção às nuances, no cuidado das situações ínfimas que compõem a textura do viver. São virtudes relacionais, quase musicais: exigem escuta, ritmo, pausa. Não pretendem transformar o mundo, mas o modo como o habitamos.
Numa cultura dominada pela eficácia, pela visibilidade e pela velocidade, cultivar as pequenas virtudes é um ato de resistência. É recusar a lógica do espetáculo, que confunde bondade com performance e sabedoria com opinião. É lembrar que a ternura é uma forma de inteligência, que a paciência é uma forma de coragem, que a cortesia é uma forma de justiça. As pequenas virtudes não competem com as grandes; são a seiva que as mantém vivas.
Elas nos recordam que a verdadeira moralidade não se mede por grandes gestos, mas por pequenas fidelidades. É mais difícil ser pontual todos os dias do que ser heroico uma vez na vida. É mais raro escutar de verdade do que pronunciar um discurso brilhante. A ética das pequenas virtudes é uma ética da constância: uma presença que se repete sem se exaurir, que se renova sem se exibir.
Há nelas uma dimensão espiritual que não se confunde com religiosidade formal. São virtudes da alma, no sentido mais elementar: modos de respirar o mundo. Praticá-las é reencontrar o espaço interior de onde brota o bem. Não exigem teoria, mas atenção; não pedem reconhecimento, mas lembrança. Elas morrem quando tentamos capturá-las em tratados, pois sua essência é ser performativa: existem enquanto são praticadas, e cessam quando se convertem em objeto de discurso.
Cuidar das pequenas virtudes é cuidar do invisível. É preservar o tecido fino da convivência humana que as grandes abstrações tendem a “passar por cima”. É manter viva a chama discreta que impede a noite moral de se tornar absoluta.
Talvez, no fim, a maior entre as pequenas virtudes seja esta: a memória das coisas pequenas ‒ o cuidado de não deixar o bem se perder no ruído das grandes causas. O mundo não se sustenta sobre os feitos extraordinários, mas sobre as delicadezas reiteradas que ninguém anota. E é nelas que se reconhece o rosto humano do bem: silencioso, cotidiano, paciente, e, ao mesmo tempo, esperançoso.
As pequenas virtudes não pedem monumentos, apenas continuidade; não são ideais a alcançar, mas respirações a manter. Enquanto houver quem as pratique ‒ quem escute, quem agradeça, quem seja fiel no pouco ‒ o mundo, apesar de tudo, continuará respirando.
Não precisamos de tratados que expliquem o que já sabemos no íntimo; precisamos de práticas que o tornem real; precisamos de menos teorias sobre a virtude e mais virtudes em ato; precisamos de menos discursos morais e mais delicadeza nos encontros. A virtude não se aprende como um conceito: vive-se. Por isso ela só permanece viva enquanto se faz gesto, presença e cuidado.
Elton Ribeiro, SJ e Luiz Sureki, SJ são professores e pesquisadores no departamento de Filosofia da FAJE
30/10/2025

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