Geraldo De Mori, SJ
Eu vi, eu vi a aflição de meu povo que está no Egito, e ouvi os seus clamores por causa de seus opressores. Sim, eu conheço seus sofrimentos” (Ex 3,7)
O Brasil comemorou, neste dia 7 de setembro de 2022, os 200 anos do famoso “Grito do Ipiranga”, simbolicamente transformado em referência da independência do país. Esse grito está na origem do que, desde então, é considerada a data da “festa nacional”, pois transformou-se em “evento fundador” do dia da pátria, com seus símbolos icônicos: a bandeira nacional, o hino nacional, as instituições nacionais, grande parte das quais constituídas ao longo desses últimos 200 anos, sobretudo a partir da Proclamação da República, em 1889. Para comemorar o evento em 2022, foi trazido o coração de Dom Pedro I, de cuja garganta teria saído o grito da independência. Várias manifestações estão previstas para esta semana, algumas das quais buscando manipular o sentido do grito ao qual, em geral, o 7 de setembro está associado. Ao lado das comemorações oficiais, há 28 anos, vários movimentos sociais, com o apoio de setores da Igreja católica, realizaram o “Grito dos Excluídos”, um modo alternativo de chamar a atenção para o sentido do grito do 7 de setembro, que é justamente o da escuta de gritos não ouvidos.
Muitos católicos consideram esse tipo de presença pública da Igreja nas ruas uma deformação da missão eclesial, pois, ao misturar fé e política, a Igreja estaria deformando a essência do anúncio da fé. Esse juízo não leva, porém, em conta que a origem da revelação divina, como aparece em textos fundamentais da história de Israel, como o de Ex 3,7, é a escuta de “gritos”. De fato, os “clamores” (= gritos) do povo eleito, submetido à escravidão no Egito, sobem até os céus. Por sua vez, Moisés, extasiado diante de uma sarça que ardia sem se consumir, é chamado não só a ver aquele sinal, mas a ouvir os gritos de seu povo e a colocar-se como enviado divino para libertá-lo. Deus escuta os gritos e leva Moisés a escutá-los e a tornar-se seu instrumento de libertação.
O “grito do Ipiranga”, tantas vezes magnificado no Hino Nacional, que conclama à independência ou à morte, pode ser lido como um ato de bravura do então príncipe que ficara no Brasil após o retorno de sua família a Portugal. Na verdade, mais que bravura, tratou-se de oportunismo, pois seu gesto deu continuidade à dinâmica colonial, uma vez que o poder da nova nação permaneceu nas mãos dos herdeiros da coroa portuguesa e, em nível estrutural, a sociedade continuava escravagista e sob o domínio de elites “nacionais” que perpetuavam a lógica colonial que até então dominava o país.
O chamado “grito”, a partir do qual o Brasil se tornou independente, na verdade, foi um grito de poder e não a escuta dos gritos dos que de fato construíam a nação e clamavam aos céus por independência. O que então se conquistou beneficiou as novas elites que estavam em formação, sem se preocupar em oferecer condições dignas de vida aos que continuavam submetidos a todo tipo de desmandos e exploração. A leitura que há 28 anos setores da Igreja junto com movimentos sociais têm feito, ao promover o “Grito dos Excluídos”, nada mais é que uma lembrança que o famoso grito de 1822 ainda não foi de fato escutado. E isso ainda é verdade 200 anos depois, como se pode ver nos inúmeros atentados às vidas dos povos que viviam no Brasil e dos descendentes dos povos que foram trazidos para construir o país, com sua força de trabalho submetida à escravidão. Quantas discrepâncias entre eles e os donos do poder, quantas injustiças que continuam fazendo com que de suas gargantas sigam saindo gritos por libertação?
Muitos cristãos, como Moisés contemplando a sarça ardente, pensam que ter fé é extasiar-se diante de uma visão maravilhosa do transcendente, ou esperar que as soluções para seus problemas e os dos que mais sofrem com as consequências de um sistema econômico e político injusto venha do céu, através de fórmulas mágicas ou de uma oração que aliena da realidade. O Deus da revelação, já no Antigo Testamento, é um Deus que desce, mas sua descida necessita das mãos, da voz, dos pés e da liderança de pessoas concretas para serem seus mediadores. O mesmo acontece no Novo Testamento. Jesus não inaugura seu ministério conclamando a um espiritualismo desencarnado. Ele é o anunciador e o inaugurador do reino de Deus. Ele chama, sim, à conversão, mas se trata de uma conversão para fazer o reino de Deus se aproximar dos que mais necessitam sentir seus efeitos. Isso se traduz em gestos concretos, como a cura das enfermidades, a expulsão dos demônios, a acolhida dos que viviam à margem por preconceitos religiosos e por pertencerem a grupos excluídos por sua pobreza ou modo de vida. Uma das orações eucarísticas da Igreja mostra isso muito bem ao afirmar: “no seu reino ninguém mais vai sofrer, ninguém mais vai chorar, ninguém mais vai ficar triste”. A escuta divina dos gritos dos que sofrem se traduz sempre em uma ação salvífica.
É importante rezar pelo Brasil? Certamente. Mas a oração que não se traduz em ação, como no caso de Moisés e de Jesus, não merece esse nome no cristianismo. Oração que simplesmente se contenta em querer obrigar Deus a resolver um problema não é oração. A oração deve sobretudo levar à gratidão e ao louvor, porque Deus é a fonte de tantos dons e bens, pelos quais se deve agradecer. A oração de súplica por uma necessidade é, da parte de quem reza, um colocar-se à disposição de Deus para fazer o que é possível. Mas, como tão bem expressa o Pai-Nosso, acolhendo a “vontade” divina.
Ir para a rua no 7 de setembro, como expressão de escuta dos gritos dos excluídos, é, no fundo, colocar-se como o “ouvido” de Deus, deixando-se, como o Bom Samaritano, afetar pela dor do que está à beira do caminho. Os que vão para as ruas apoiar gestos autoritários de poder, mesmo vendo os que estão à beira do caminho, como o sacerdote (= homem do culto e do sacrifício) e o levita (= homem supostamente versado na leitura das Escrituras), ainda não se deram conta de que a única coisa que torna verdadeiramente alguém humano é o que faz despertar nele os sentimentos de compaixão, solidariedade e cuidado. Quem se acostumou com o sofrimento do outro ou quem vê na defesa de seus direitos inalienáveis somente conspiração e posição “esquerdista”, não sabe ainda o que é o apelo a ser humano e muito menos o que significa ser cristão. Como tão bem expressa Jesus na parábola do juízo final, é a caridade feita aos que mais sofrem que salva, ou seja, é a capacidade de abrir os olhos, os ouvidos, de escutar os gritos de quem sofre, de colocar-se a seu serviço, é isso que salva e torna alguém parecido com Jesus, que, segundo a fé cristã, é a imagem verdadeira do humano.
Oxalá, ao comemorar os 200 anos da Independência, muitos/as brasileiros e brasileiras que se dizem seguidores de Jesus de Nazaré, aprendam com ele a escutar tantos gritos que ainda sobem do chão da terra que um dia levou o nome do instrumento do suplício pelo qual chegou a salvação do mundo. A terra da Santa Cruz, como a quiseram batizar os que chegaram da Europa em 1500, tem traçada nesse nome um apelo, a do dom de um amor que se entrega todo para que o outro tenha nele vida.
Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE