Alfredo Sampaio Costa SJ
Estamos refletindo sobre como podemos usar a Bíblia dentro do percurso dos Exercícios, pois ela é praticamente o único livro “autorizado” para nos acompanhar no itinerário espiritual. Se no primeiro texto tratávamos de afirmar que a busca de um sentido literal é necessária, mas insuficiente, agora avançaremos mais alguns passos. De que forma interage o texto inspirado, a minha pessoa e a comunidade de fé?
O texto fala a cada leitor na sua vida: a hermenêutica de leitor = o texto para nós
É muito importante saber a que tipo de leitor (ou comunidade) está dirigido cada texto, porque isso nos ajudará a determinar mais cuidadosamente o alcance do que se diz nele. Hoje se insiste muito em conhecer como era a comunidade concreta à qual os textos bíblicos eram dirigidos. Acredito que isso ajude a perceber que a compreensão do texto não se esgotará nunca em uma interpretação isolada de alguém, além de nos inserir em uma dinâmica eclesial, comunitária, litúrgica, que só poderá enriquecer nossa experiência de contato com a Palavra.
Ao tomarmos um texto para nossa oração, rezarmos com ele situados ao interno de uma comunidade de fé, com suas preocupações e anseios próprios, o texto ganhará contornos antes insuspeitáveis. Quando alguém se propõe a colocar por escrito suas experiências, reflexões, narrativas, faz isso sempre tendo em vista algum destinatário que possa ler seus escritos, presentemente ou futuramente. Ainda que possa ser ele mesmo, no caso de um “diário espiritual”, impensado em ler lido publicamente por outros. Escrever é sempre “escrever a”, assumir a alteridade do leitor. Ainda que um texto possa admitir muitas leituras, não admite “todas”. Uma mesma obra pode ser interpretada de maneiras diferentes por distintos atores, preservando o seu núcleo de objetividade. Cada um deles penetra em alguma de suas múltiplas possibilidades que estão ali latentes esperando de serem descobertas[1]. Essa é também a riqueza que brota das leituras comunitárias da Palavra de Deus!
Quem já viveu a experiência de participar de um “Círculo Bíblico” em uma comunidade eclesial de base entenderá bem o que quero dizer! Na partilha em comum da Palavra quantos sentidos insuspeitados veem à tona, e se vive uma experiência de sermos também nós elos de uma corrente de transmissão da Palavra de Salvação!
Todo texto, inclusive os textos bíblicos, necessita de leitores desejosos de aprender e sensíveis o bastante para saborear as particularidades do escrito. Serão os leitores aqueles que atualizarão a obra, a interpretarão e a reproduzirão no contexto histórico-social-político em que se encontram. Essa subjetividade é inevitável e não é necessariamente negativa. Dá sabor e cor ao texto!
Não se trata de julgar os diversos intérpretes, classificando-os em bons e maus, os que acertam o que o texto quer dizer e os que o interpretam mal. Se comparamos as diversas experiências que brotam da leitura do mesmo texto a uma orquestra formada por diversos instrumentos, podemos dizer que as diversas tonalidades e notas dão vida a uma polifonia das múltiplas interpretações possíveis, muitas delas válidas. Isso não quer dizer que qualquer texto seja susceptível de qualquer interpretação. Os textos têm um reduto de objetividade que não se submete aos subjetivismos caprichosos do leitor ou do intérprete. Uma vez preservado esse núcleo de objetividade, uma obra pode ser interpretada de maneiras diferentes por distintos atores. Cada um deles penetra em alguma de suas múltiplas possibilidades que estão ali latentes esperando por serem descobertas.
Nos Exercícios Espirituais, Inácio insiste que o que buscamos é uma experiência de encontro com o Senhor, e o conhecimento que queremos ter de Cristo deve ser um conhecimento afetivo, “para mais amá-lo e segui-lo (servi-lo)” (EE 104). Certamente se trata de respeitar a intenção do autor sagrado que escreveu para que Cristo fosse conhecido e seguido. Mas a Palavra será dirigida a uma gama de sujeitos com histórias e motivações particulares únicas.
Para garantir essa “objetividade necessária”, ao escrever as chamadas Anotações que se dirigem a quem dá os Exercícios, Inácio pede que estes exponham com simplicidade a matéria, “o fundamento da história” (EE 2), sem perder-se em divagações exegéticas. Leiamos o texto dos Exercícios:
“Quem propõe a outro o modo e a ordem de meditar ou contemplar, deve narrar fielmente a história de tal contemplação ou meditação, apresentando, breve ou sumariamente, os pontos. Pois, assim, a pessoa que contempla, tomando o verdadeiro fundamento da história, reflete e raciocina por si mesma. Encontrando alguma coisa que a esclareça ou faça sentir mais a história, quer pelo seu próprio raciocínio, quer porque seu entendimento é iluminado pela virtude divina, tem mais gosto e fruto espiritual do que se quem dá os Exercícios explicasse e ampliasse muito o sentido da história. Pois não é o muito saber que sacia e satisfaz a pessoa, mas o sentir e saborear as coisas internamente” (EE 2).
Claramente podemos ver na intenção de Inácio que ele propõe um fundamento verdadeiro, mas que deverá ser trabalhado e explorado em diversas maneiras por cada um. São desaconselhadas as longas exposições teóricas da matéria para rezar. O trabalho deverá ser deixado a cada exercitante, para que sua oração brote da sua particular condição encarnada, conforme suas disposições internas e motivações. À obsessão que muitos apresentam de “muito saber”, transformando a experiência orante dos Exercícios em “cursos de teologia”, Inácio indica o caminho sapiencial de “sentir e saborear as coisas internamente”, sem pressa nem imediatismos.
Ao tomar um texto bíblico para contemplar, colocamo-nos frente a ele com uma determinada atitude, situamos esse texto em uma determinada posição. “O texto sempre se lê desde um ângulo determinado, como acontece nos determos diante de um quadro […] Desde ângulos diversos se veem estruturas distintas. Os vitrais das catedrais góticas estão feitos para serem vistos de dentro, não de fora”[2]. Se olhados de fora, não se capta toda sua beleza.
Pensar em uma pura objetividade é uma abstração absurda. Aquele que se mantém indiferente não experimenta nada. A participação é um pressuposto de todo conhecimento, principalmente quando falamos de oração. Por isso Inácio, seguindo a escola de Ludolfo de Saxônia, autor da “Vida de Cristo” que provocou tantas reações afetivas no coração de Inácio, pede que o exercitante se coloque “dentro” do Mistério que contempla, para realmente participar dele, para sentir que aquela cena da Vida de Cristo quer dizer algo à pessoa que a contempla!
Tal atitude exigirá certamente do exercitante um despojamento e uma abertura nada fáceis. Não nos aproximamos da oração nem de Deus sem pré-condições, segundas intenções, muitas vezes escondidas ou não confessadas. Segundo sejam as perguntas que eu traga ou as coisas que me preocupam quando vou rezar o texto, o texto me responderá de maneira distinta. Tudo depende muito também do uso que quero fazer da leitura: se eu leio para me entreter somente, para preparar uma homilia, para tirar argumentos a favor de algo, para me comunicar com Deus… A minha percepção de um texto variará igualmente conforme minha sensibilidade a um determinado tipo de vocabulário que me atrai ou me repele; segundo for minha atitude para com aquele autor, positiva ou negativa; conforme eu leia o texto predisposto a deixar-me convencer ou não; segundo estiver hoje triste ou alegre[3].
Ao rezar a partir da Bíblia fazemos a experiência de que o texto não é o texto sozinho, mas o texto na sua relação com o leitor (ou leitores). Eu mesmo experimento que posso voltar a ler o mesmo texto em circunstâncias muito distintas e encontrar-me-ei com dois textos diversos. Um texto nunca é igual quando o leio duas vezes. Um texto nunca é igual quando o leio duas vezes distintas. Parafraseando Heráclito, podemos dizer que ninguém entra duas vezes no mesmo rio, nem lê duas vezes o mesmo texto. Depois de uma experiência espiritual intensa, posso voltar a ler a Bíblia de maneira distinta. Textos que antes não me diziam nada, agora me dizem muitíssimo. Após ter lido um texto uma primeira vez, estou mais bem preparado para entendê-lo melhor numa segunda leitura, porque o texto me interpelou, fez-me reagir, preparou-me para uma outra leitura nova desde um ângulo onde posso descobrir coisas que não consegui perceber a primeira vez. Pensem em quantas coisas novas descobrimos em um romance ou em um filme quando voltamos a vê-lo já sabendo o final!
O que Deus quis dizer mediante as palavras dos autores humanos: a hermenêutica de texto
O Concílio Vaticano II, nos números 11-12 da “Dei Verbum”, abriu uma porta a uma interpretação mais ampla do que unicamente buscar o sentido literal do texto, na intencionalidade do autor sagrado. Considerou a possibilidade que Deus queira dizer coisas que o autor não acabou de entender ou das quais não era consciente de uma maneira reflexa. Quando o que nos interessa é a obra mais que seu autor, passamos a considerar a obra como uma realidade autônoma e adulta. Este enfoque é mais objetivo e mais atual.
O texto ultrapassa a intencionalidade do autor. Sobre ele podem ter atuado motivos subconscientes, condicionamentos psicológicos, sociológicos e linguísticos dos quais não se deu conta, e que afetam o que ele quer dizer, limitando o teor de sua mensagem, o que nos obriga a matizar suas afirmações.
Como afirma Alonso Schökel, reduzir o autor ao mecanismo de sua intenção consciente é um minimalismo intolerável. Muitas vezes um autor, ao ler a recensão que lhe faz um bom crítico, fica admirado de tudo que este crítico foi capaz de encontrar em sua obra. Ele observou associações originalíssimas nas quais o próprio autor jamais tinha pensado. “Às vezes o autor não é o melhor intérprete de sua obra”[4]. Mas uma pergunta pode surgir: como decidir se o autor tinha pensado ou não determinado sentido que nós entrevemos em seu texto? Como estamos seguros de que fazemos “exégesis” (isto é, uma ação de tirar algo que já estava no texto) e não “eiségesis” (ato de introduzir algo que não estava ali antes)? Neste ponto duas atitudes são possíveis: uma minimalista e outra maximalista. Os maximalistas exigem provas contundentes de que o próprio autor percebeu este sentido. Os minimalistas se contentam com que não se possa provar que não o percebera[5].
No seu próximo momento de oração contemplativa, procure utilizar o que aprendeu a partir desse texto, colocando-se as perguntas:
– O que o texto diz para a minha vida?
– O que percebo da intencionalidade do autor sagrado ao escrever inspirado pelo Espírito?
– Como posso também eu transmitir essa palavra que me foi dirigida?
Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
[1] Juan Manuel Martín-Moreno, La nueva hermenéutica y el uso de la Biblia en los Ejercicios, Manresa 82 (2010) 333-334.
[2] L. ALONSO SCHÖKEL y J. M. BRAVO, Apuntes de hermenéutica, Madrid: Trotta 1994, 29.
[3] Juan Manuel Martín-Moreno, La nueva hermenéutica y el uso de la Biblia en los Ejercicios, Manresa 82 (2010) 336.
[4] L. ALONSO SCHÖKEL y J. M. BRAVO, Apuntes de hermenéutica, Madrid: Trotta 1994, 34.
[5] Juan Manuel Martín-Moreno, La nueva hermenéutica y el uso de la Biblia en los Ejercicios, Manresa 82 (2010) 338.