Marília Murta de Almeida
Libertação parece ser uma daquelas palavras que, mesmo que não compreendamos inteiramente, nos tocam diretamente em algum lugar emocional ou existencial. Libertar-se de algo que prende fisicamente, libertar-se de um relacionamento aprisionante, libertar-se do jugo da violência, libertar-se da fome ou de qualquer outra carência, libertar-se de pensamentos ou hábitos de vida limitantes – inúmeras são as imagens evocadas pela palavra libertação.
No universo da teologia, ela tem seu mundo próprio na história latino-americana. A teologia da libertação carrega em seu nome o imaginário libertador. Concretamente, veio dizer de um Deus libertador que acompanha o ser humano na história e aponta para ele os caminhos da libertação de todo tipo de amarras. Com inspiração bíblica, tem o tema do êxodo como o primeiro grande ato libertador do Deus que nos acompanha e liberta.
Podemos nos perguntar, nos aproximando infinitamente da ideia de um Deus libertador, o que caracterizaria esse Deus. Pedro Casaldáliga, bispo católico espanhol que viveu em terras brasileiras por mais de 50 anos e foi também poeta e profeta, nos oferece uma instigante resposta a essa pergunta em seu pequeno poema “¡Oh dios mayor!”:
Voy a intentar querer lo que Tú quieres
y hacer Tu voluntad contra la mía.
Quiero dejarTe ser lo que Tú eres:
¡Unico, Otro, Nuevo cada día!
O poeta expressa seu desejo de tentar querer o que Deus quer e deixa clara a dificuldade aí implicada, que é a contrariedade em relação à sua própria vontade. Permitir que Deus nos habite e fazer da nossa vontade a Dele implica em renúncia ao que desejamos por nós mesmos. Entretanto, o poema fala de outra dificuldade ainda mais desafiadora, que diz respeito ao que somos e ao que Deus é. Não se trata apenas de conflito entre o que quero e o que Deus quer, mas entre o que sou e o que Deus é. Segundo o poeta, Deus é “Único, Outro, Novo a cada dia”. Inteiramente contido em si mesmo, absolutamente diferente de nós e aberto à constante novidade da mudança. Ser “novo a cada dia” é algo que nos impacta. Somos os seres da história; nossa identidade se forja a cada dia desde o nosso nascimento; nesse caminho, feito de movimento e mudança, aprendemos constâncias que nos permitem nos reconhecer – e que os outros nos reconheçam – um dia após o outro. A identidade humana implica em conservação apesar das mudanças inevitáveis do curso da vida. Por mais que sejamos amigos da mudança – e muitos de nós não o são! – não somos capazes de sermos novos a cada dia.
Apegados a estilos de vida, estruturas de pensamento e compreensão do mundo, constituídos pela constância psíquica que nos estrutura como indivíduos, vamos construindo constâncias ao longo da vida. Sem elas, nos desestruturaríamos psíquica e socialmente. Entretanto, elas são também amarras que nos mantêm presos em lugares de todo tipo – físicos, psíquicos, sociais, políticos, relacionais. Quando sentimos o aprisionamento, desejamos a libertação. Mas muitas vezes nos descobrimos incapazes disso, não só pelas dificuldades inerentes ao aprisionamento, mas também por estarmos ali pelo conforto do hábito, do costume e da segurança.
O Deus libertador, nesse sentido, nos desafia: Ele, que é novo a cada dia, nos chama à libertação em relação às nossas amarras, mesmo quando elas são sentidas como protetoras. Ser novo a cada dia é um ideal que fascina e amedronta, e que exige de nós mais do que podemos em nosso ser fragilmente individual.
Fazer a vontade de Deus, segundo o texto do poema de Pedro Casaldáliga, é deixar que Ele seja o que é. É, portanto, deixar-se tocar por esse ser de Deus que, sendo único e outro, é novo a cada dia. Deus não está preso a nada, sua liberdade infinita permite a renovação também infinita. Libertação não é palavra que faça sentido para o ser de Deus; Ele é livre, não carece de libertar-se. Nós, ao contrário, somos sempre renovadamente aprisionados pelos fluxos diversos de nossas vidas; mas diante da liberdade de Deus, podemos aprender a libertação. Ato que deve ser infinito como a liberdade divina, porque deve sempre se renovar diante das amarras sempre também renovadas em nós.
Podemos seguir um pouco mais no entendimento dos quatros versos do poeta: a libertação é a vontade de Deus para nós. O Deus libertador é o que, mais do que nos apontar os caminhos da libertação, afirma a necessidade da libertação para a plena vida humana. Ele nos quer libertos. Ele nos quer capazes de ser como Ele é.
Para tanto, parece ser necessário que percebamos, a cada dia, o que nos aprisiona e por onde caminham os fluxos de libertação. Não nos faremos liberdade infinita, porque Deus é outro diferente de nós, mas podemos fazer a Sua vontade exercendo infinitamente a libertação. A cada dia. Individualmente, socialmente, comunitariamente, relacionalmente.
Politicamente.
Marília Murta de Almeida é professora e pesquisadora no departamento de Filosofia da FAJE