Alfredo Sampaio Costa SJ
Nos textos anteriores, fizemos referência, de passagem, a alguns textos do Magistério recente da Igreja que fundamentam o modo de utilizar a Bíblia na oração. Neste artigo, seguindo a reflexão de Juan M. Martín Moreno[1], aprofundaremos nossa reflexão sobre eles. Trata-se da Constituição Dogmática “Dei Verbum” do Vaticano II e do importantíssimo documento da Pontifícia Comissão Bíblica intitulado “A interpretação da Bíblia na Igreja”, do ano 1993.
A “Dei Verbum” (11-13) e a experiência de ler e escutar um texto divino e humano
Interessa-nos principalmente o número 12, onde se formulam 4 princípios muito valiosos para a exegese bíblica mais além dos métodos histórico-críticos: leitura da Escritura no Espírito, atenção à unidade de toda a Escritura, ao contexto da Tradição eclesial e à analogia da fé.
A emoção de ter em mãos um texto inspirado e animado pelo próprio Espírito divino: A “Dei Verbum” nos recorda algo que é preciso sempre ter presente ao tomar um texto da Sagrada Escritura: que temos em mãos um texto contendo as verdades reveladas por Deus, escritas sob a inspiração do Espírito Santo. Portanto, temos que nos aproximarmos sempre com reverência, como Inácio indica na terceira anotação (cf. EE 3).
O segundo ensinamento a ser sempre tomado em consideração é o seguinte: na redação dos livros sagrados, Deus escolheu homens e se valeu deles, usando suas próprias faculdades e forças[2], de forma que, agindo Ele neles e por eles, escreveram, como verdadeiros autores, tudo e somente o que Ele queria[3].
Como interpretar a Sagrada Escritura: Tendo Deus falado na Sagrada Escritura por meio de homens e em maneira humana, o intérprete da Sagrada Escritura deve investigar com atenção o que pretenderam expressar realmente os autores sagrados a fim de compreendermos o que Deus quis nos comunicar por meio deles.
Tal trabalho inclui atender aos “gêneros literários” utilizados por cada autor, uma vez que a verdade se propõe e se expressa de uma e de outra maneira segundo se tratar de um texto histórico, profético, poético ou de outras formas de falar (discursos, cartas etc.).
Convém que o intérprete investigue o sentido que o autor sagrado tentou expressar em cada circunstância, segundo as condições de seu tempo e cultura.
E como deve ler e interpretar a Sagrada Escritura com o mesmo Espírito com que se escreveu, para descobrir o sentido exato dos textos sagrados, há que atender com diligência ao conteúdo e à unidade de toda a Sagrada Escritura, tendo em conta a Tradição viva de toda a Igreja e a analogia da fé. Toca aos exegetas esforçarem-se segundo estas regras para entender e expor mais a fundo o sentido da Sagrada Escritura para que a Igreja, que tem o mandato e o ministério divino de conservar e interpretar a Palavra de Deus[4], possa amadurecer um juízo sobre tais estudos.
O docum. “A interpretação da Bíblia na Igreja” e a abertura de sentido (II,B)
Rezar com a Bíblia abre para nós um universo de significados, emoções, sentimentos, à medida em que nos deixamos interpelar pela Palavra que nos é anunciada e mergulhamos em um mundo repleto de símbolos, expressões, compreensões do mundo e de Deus que constituem o contexto em que o autor sagrado compreendeu a Palavra e a transmitiu a nós.
Ao rezar fazemos a experiência de que se abre diante de nós significados antes despercebidos, nossa afetividade é tocada de maneiras distintas e intensidades diversas. Fazemos experiência de que o texto que temos diante de nós não só transmite as palavras que o autor sagrado quis pronunciar, mas fala na nossa vida de um modo singular, especial.
Na Antiguidade já se estabelecia uma distinção entre o sentido literal e o sentido espiritual. A exegese medieval ampliou essa interpretação possível, ao perceber no sentido espiritual três aspectos diferentes, que se relacionam, respectivamente à verdade revelada, à conduta que se deveria manter e ao cumprimento final. Reagindo contra essa multiplicidade de sentidos, a exegese histórico-crítica adotou, mais ou menos de forma aberta, a tese da unidade de sentido, segundo a qual um texto não pode ter simultaneamente diferentes significados. Todo o seu esforço consistirá em definir “o” sentido de tal ou qual texto bíblico nas circunstâncias em que foi produzido. Ora, tal tese se choca no presente com as conclusões das ciências da linguagem e da hermenêutica filosófica, que afirmam a polissemia dos textos escritos. O problema não é simples e não se apresenta do mesmo modo em todos os gêneros de textos. Contudo, busquemos alguns princípios gerais, levando em conta a diversidade de opiniões.
- A legitimidade de buscar o sentido literal
Já Santo Tomás afirmava sua importância fundamental (S. Th, I, q.1, a.10, ad. 1). O sentido literal não deve ser confundido com o sentido “literalista” de muitas interpretações fundamentalistas. Não basta traduzir um texto palavra por palavra para obter seu sentido literal. É necessário compreendê-lo segundo as convenções literárias de seu tempo. Quando um texto é metafórico, seu sentido literal é o que corresponde ao emprego metafórico dos termos. Quando se trata de um relato, o sentido literal não comporta necessariamente a afirmação de que os fatos narrados se produziram efetivamente, uma vez que um relato pode não pertencer ao gênero histórico, mas ser uma obra de imaginação.
O sentido literal da Escritura é aquele que foi expresso diretamente pelos autores humanos inspirados. Sendo fruto da inspiração, esse sentido é também querido por Deus, autor principal. Pode ser discernido graças a uma análise precisa do texto, situado em seu contexto literário e histórico.
O sentido literal de um texto é único? Em geral sim, mas não se trata de um princípio absoluto e isso por duas razões. Por uma parte, um autor humano pode querer se referir ao mesmo tempo a vários níveis de realidade. Tomemos o caso de uma poesia. Por outro lado, ainda quando uma expressão humana parece não ter mais de um significado, a inspiração divina pode guiar a expressão de modo que se produza uma ambivalência. Tal é o caso da palavra de Caifás em Jo 11,50 [convém que um só homem morra pelo povo]. Ela expressa ao mesmo tempo um cálculo político imoral e uma revelação divina. Estes dois aspectos pertencem ao sentido literal, já que ambos são postos em evidência pelo contexto.
Muitos textos apresentam um aspecto dinâmico, como os chamados “Salmos reais” (Salmos 2, 18, 20, 22, 23, 24, 45, 47 e 63), cujo sentido não deveria estar limitado estreitamente às circunstâncias históricas de sua produção. Falando do rei, o salmista evoca ao mesmo tempo uma instituição concreta e uma visão ideal da realeza, conforme ao desígnio de Deus, de modo que seu texto ultrapassa a instituição monárquica tal como se tinha manifestado na história. A exegese histórico-crítica deveria procurar precisar a direção de pensamento expressa no texto, percebendo as suas extensões mais ou menos previsíveis.
A moderna hermenêutica chama a atenção ainda para o fato de que quando um texto é posto por escrito ele passa a ter a capacidade de ser situado em novas circunstâncias, que o iluminam de modo diferente. Essa capacidade é especialmente efetiva no caso dos textos bíblicos, reconhecidos como palavra de Deus. O sentido literal está, desde o começo, aberto a desenvolvimentos ulteriores que se produzem graças a “releituras” em novos contextos.
Daí não se segue que se possa atribuir a um texto bíblico qualquer sentido, caindo em um subjetivismo.
- Em busca de um sentido “espiritual”, para além do literal:
O acontecimento pascal, a morte/ressurreição de Jesus estabeleceu um contexto histórico radicalmente novo, que ilumina de modo novo os textos antigos e faz com que passem por uma mutação de sentido. Adquirem o que se chama de “sentido espiritual”, sob o impacto dessa nova luz e da vida nova que provém da ressurreição.
O sentido espiritual não pode jamais estar privado de uma relação com o sentido literal. Este continuará sendo sempre a base indispensável de qualquer interpretação dada. Podemos então falar de “cumprimento” das Escrituras. Para que se dê esse “cumprimento”, é essencial uma relação de continuidade e de conformidade, ao mesmo tempo que é necessário aceder a um nível superior de realidade, inaugurado pelo mistério pascal e a ação do Espírito.
Não devemos confundir o sentido “espiritual” com as interpretações subjetivas ditadas pela imaginação ou pela especulação intelectual.
A leitura espiritual, feita em comunidade ou individualmente, só descobre um sentido espiritual autêntico quando relaciona três níveis de realidade: o texto bíblico, o mistério pascal e as circunstâncias presentes de vida no Espírito.
Um dos aspectos possíveis do sentido espiritual é o que se chamou de “tipológico”, presente na Escritura, quando por exemplo afirma que Adão é figura de Cristo (Rm 5,14), o dilúvio é figura do batismo (1 Pe 3,20-21) etc.
- Outro modo de falar: um sentido sempre mais “pleno”
Esta categoria se define como um sentido profundo do texto, querido por Deus, mas não claramente expressado pelo autor humano. Descobrimos sua existência em um texto quando o estudamos à luz de outros textos bíblicos que o utilizam, ou na sua relação com o desenvolvimento interno da revelação. Trata-se, pois, do significado que um autor bíblico atribui a um texto bíblico anterior, quando volta a empregá-lo em um contexto que lhe confere um sentido literal novo; ou do significado que uma tradição doutrina autêntica ou uma definição conciliar dá a um texto bíblico. Assim, o contexto de Mt 1,23 dá um sentido pleno ao oráculo de Is 7,14 “Eis que a jovem está grávida e dá a luz um filho”, utilizando a versão dos Setenta, mudando “jovem” por “virgem”. A tradição cristã antiga aplicou esse oráculo a Maria, mãe de Jesus, o herdeiro por excelência da tradição davídica.
O fundamento desse sentido “pleno” é que o Espírito Santo, autor principal da Bíblia, pode guiar o autor humano na escolha de expressões de tal modo que elas expressem uma verdade da qual ele não percebe toda sua profundidade. No curso do tempo esta é mais completamente revelada, por uma parte, graças a realizações divinas ulteriores que manifestam melhor o alcance dos textos; e, por outra, graças à inserção dos textos no cânon das Escrituras. Assim se constitui um novo contexto, que revela as potencialidades de sentido que o contexto primitivo deixada na obscuridade.
Ao ler (rezar) a Bíblia, você tem estado atento(a) aos critérios aqui apontados:
– Tem lido (rezado) a Sagrada Escritura deixando-se conduzir pelo Espírito?
– Tem estado atento(a) à unidade da Sagrada Escritura, não lendo o texto fora do seu contexto e buscando sempre estar em sintonia com a mensagem total da Bíblia?
– Tem procurado conhecer como o texto foi interpretado na Tradição da Igreja, para não ficar refém de subjetivismos?
– Por último: tem rezado com fé?
Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
[1] Juan M. MARTÍN MORENO, Textos sobre Hermenéutica bíblica, Manresa 82 (2010) 379-389.
[2] Cf. PIO XII, Divino afflante Spiritu, septiembre de 1943, A.A.S. 35 (1943) p. 14, Enchir. Bibl., 556.
[3] LEÃO XIII, Providentissimus Deus, noviembre de 1893: Denz., 1952 (3.293); Enchir. Bibl.,
[4] Cf. CONCÍLIO VATICANO I, De fide catholica, c. 2 De revelatione: Denz., 1788 (3007).