Geraldo De Mori SJ
“Ele é a nossa paz. De dois povos ele fez um só, em sua carne derrubou o muro da inimizade que os separava” (Ef 2,14)
Muitas pessoas ficaram surpresas com a gravação, por Caetano Veloso, do hit Deus cuida de mim, do Pastor e cantor evangélico Kleber Lucas, divulgado em 4 de dezembro de 2022. Dentre os títulos das matérias publicadas sobre o assunto, é sugestivo o do Portal Versos e Prosas: “Ateu, Caetano grava Deus cuida de mim, com Pastor Kleber Lucas”. Para além do significado religioso desse hit, tido como um dos maiores sucessos da música cristã brasileira, é interessante refletir sobre o que que subjaz ao gesto do grande compositor e cantor baiano. Segundo ele, essa incursão no gospel o levou “para mais perto da realidade evangélica brasileira” e o colocou “mais fundo dentro do Brasil”. Os algoritmos, observa Caetano, nunca o levaram ao gospel brasileiro. Ele sabia da existência de cantores evangélicos, mas nunca tinha procurado ouvi-los ou se deixado atrair por esse estilo musical. Ao encontrar-se com Kleber Lucas, por ocasião da campanha política, descobriu que ele falava a língua de milhões de cristãos pobres. De fato, segundo dados publicados pela Folha de São Paulo em 2019, a “cara do evangélico brasileiro é preta, pobre, periférica e predominantemente feminina”.
Numa espécie de “contraponto” ao evento musical divulgado em 4/12/2022, embora pertença a um outro registro, o de uma ação política, chamou a atenção a prisão, no dia 12/12/2022, do Pastor José Acácio Serene Xavante, por manifestações antidemocráticas no dia da diplomação do Presidente eleito Luis Inácio Lula da Silva.
Aparentemente os dois acontecimentos não possuem nenhuma relação entre eles, mas é importante, no âmbito da reflexão sobre o que acontece no Brasil na atualidade, tentar relacioná-los. A perspectiva aqui proposta é a da fé cristã, que, além de confissão que se traduz em práxis, deve dar as razões de sua esperança (1Pd 13,15), já que nos dois casos estão em questão leituras divergentes do país e do cristianismo.
Segundo a reportagem do Portal Versos e Prosas, o Pastor Kleber Lucas foi o artista gospel mais famoso a fazer campanha contra Bolsonaro, tendo lançado, na semana da votação do Primeiro Turno, a música “Messias”, na qual denuncia o “sequestro das igrejas evangélicas pelo bolsonarismo”, o que lhe valeu o cancelamento de sua agenda nas semanas seguintes. Embora situado em campo oposto ao do autor de Deus cuida de mim, o Pastor José Acácio Serene Xavante é a expressão viva desse “sequestro”, uma vez que o mundo indígena nacional nunca foi tão ameaçado quanto nos últimos quatro anos pela política do regime defendido por ele. E isso não deixa de ser uma contradição, pois um dos representantes dos povos mais oprimidos do país assume a defesa daquele que encarna a decisão política que ameaça seu próprio povo.
O “sequestro” da fé de milhões de pessoas simples para fins ideológicos contrários ao coração mesmo do anúncio da Boa Nova de Jesus Cristo, denunciado pelo Pastor Kleber Lucas e ilustrado pelo Pastor José Acácio Serene Xavante, é um apelo, por um lado, à necessidade de uma sadia “suspeita” com algumas expressões doentias do crer, e, por outro lado, a uma redescoberta do lugar dos símbolos, narrativas e rituais religiosos na existência humana em sociedades complexas como a brasileira atualmente.
2022 foi uma ocasião propícia para de novo pensar “o que faz o brasil, Brasil?”, por conta do segundo centenário da Independência do país e do primeiro centenário da Semana de Arte Moderna. Embora criticado por alguns fiéis evangélicos, por ser declaradamente “ateu” ou por ter vínculos com as religiões de matrizes africanas, ou por ter “bagunçado todas as fronteiras simbólicas da esquerda”, segundo uma antropóloga amiga de Juliano Spyer, criador do Observatório Evangélico, o gesto de Caetano, ao gravar a música Deus cuida de mim, é a expressão do que há de mais bonito em certos setores da cultura brasileira: sua capacidade de acolher, valorizar e ressignificar o que é outro, o que vem do outro, e, no caso da cultura nacional, o que é popular. Foi assim com o samba, com a bossa nova, com a música caipira ou sertaneja, assumida por poetas, artistas e músicos como encarnando algo da identidade do país.
A acolhida do outro, do diferente e, no caso da musicalidade evangélica, da fé de uma grande parcela de pobres, sobretudo de mulheres negras, não deixa de ser um gesto transgressivo, pois, no cotidiano, essas pessoas não são reconhecidas e devem fazer de tudo para sobreviver. Muitas das canções valorizadas nesses ambientes podem soar a intimismo e mesmo a “ópio”, como tão bem diagnosticou a crítica marxista à religião. No entanto, é essa fé que “sustenta” seu mundo, dando coragem aos que a ela aderem, para acordarem cada dia, sofrerem todo tipo de dificuldades e humilhações, perseverarem na luta para trazer o pão de cada dia para os filhos e netos, serem capazes ainda de se alegrarem com o pouco que a vida vai lhes dando. O interessante é que o reconhecimento da música Deus cuida de mim venha justamente de um “ateu”, que tem relações com outra tradição religiosa discriminada no Brasil, inclusive e, sobretudo, por evangélicos, a afro-brasileira. As críticas do ateísmo à religião em geral e ao cristianismo em particular ajudaram a fé cristã a “purificar” sua visão de Deus e são extremamente importantes em tempos de “sequestro” da fé por ideologias que se utilizam da religião.
Com efeito, os chamados “mestres da suspeita”, a saber Marx, Freud e Nietzsche, ajudaram a teologia a depurar seus argumentos para pensar Deus e a religião. Com isso abriram espaço a uma redescoberta do lugar e da função do sagrado e do santo nas sociedades antigas e modernas, mostrando sua ambiguidade e a necessidade constante de sua reinterpretação, para que não fossem manipulados pelo poder político, econômico, ou por fatores culturais e mesmo pela visão subjetiva da própria existência.
O que tem acontecido no Brasil nos últimos anos, em que argumentos religiosos têm sido utilizados para defender visões extremamente contrárias à dignidade dos mais pobres, ao cuidado da casa comum e ao respeito mínimo que se deve ter pelo outro, é uma manifestação importante da necessidade de não se deixar levar por argumentos que usam o nome de Deus, mas no fundo, são contrários à revelação de Deus feita por Jesus. Mais que demonizar ou condenar, Jesus chamava todos a um olhar de misericórdia para com os outros. Esse olhar é capaz de compaixão, deixa-se afetar pela dor do outro, busca de alguma maneira estar ao seu serviço, diminuir sua dor, salvá-lo.
O “muro de inimizade” que, segundo Paulo, opunha pagãos e judeus, foi derrubado por Jesus (Ef 2,14), que quer criar “um só corpo”, composto com a riqueza das diferenças que compõem a humanidade e a Igreja. No Brasil, o muro de inimizade criado nos últimos anos, fazendo do outro inimigo a ser eliminado, deve ceder o lugar às pontes que criam relações, que sabem valorizar o que no outro tem de único, mesmo que não seja aquilo com o qual cada um está habituado ou que considera ser a única verdade. O gesto de Caetano e do Pastor Kleber Lucas indicam uma das vias para isso.
Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE