Luiz Sureki, SJ
Na medida em que avança a investigação científica acerca do universo, do ser humano e das estruturas elementares da vida e da matéria, parece que os milagres vão desaparecendo na mesma proporção. Muitos acontecimentos outrora tidos por especiais intervenções divinas no mundo e, por conseguinte, por acontecimentos miraculosos, já não fazem mais parte da compreensão que o homem e a mulher de hoje têm acerca da vida, do mundo, do universo. Isso porque na compreensão ordinária o milagre está associado a algo que simplesmente não tem explicação natural, racional, que se trata, pois, de algo extraordinário, sobrenatural, suprarracional. Parece, então, que o que pode ser compreendido racionalmente e explicado cientificamente pelo ser humano deixa, como que automaticamente, de ser milagre.
A palavra latina miraculum significa admirável, que causa admiração; prodígio, maravilha. Uma consulta rápida em dicionários online nos dizem basicamente o seguinte:
– Milagre é um fato extraordinário, inesperado e inexplicável pelas leis naturais. Um fenômeno excepcional que ocorre por força da ação direta de Deus. Daí o seu sentido religioso;
– É um acontecimento extraordinário – direta ou indiretamente realizado por Deus -, incomum ou formidável que não pode ser explicado pelas leis naturais;
– É um sinal ou indício de que há interferência divina na vida dos homens.
Estas definições, escolhidas de modo bastante aleatório, mostram que a compreensão de milagre está estreitamente associada à ação (direta ou indireta) de Deus na natureza e, especialmente, na vida das pessoas, e que, justamente por se tratar de uma ação de Deus é que ela é tida por não-natural ou sobrenatural, extraordinária, miraculosa.
No âmbito filosófico moderno, o filósofo empirista escocês David Hume (1711-1776) é comumente mencionado. Aqui a discussão em torno do milagre levantava dois problemas. O primeiro era: se Deus continua (ou não) a intervir diretamente no mundo após a sua criação; e o segundo: se o caráter necessário das leis naturais se aplica também a Deus, ou se Ele pode alterá-las. No primeiro caso temos que, se Deus não continua a intervir diretamente na sua criação, não há espaço para se falar em milagres. No segundo caso, a intervenção divina na criação é tomada como (uma) quebra das leis naturais, leis estas que regem a criação e que foram dadas ou nela colocadas pelo próprio Criador, de modo que não faz sentido que Deus rompa com o que Ele mesmo instituiu. A discussão, ao final das contas, levava à impossibilidade de justificar racionalmente os milagres, já que a crença na ocorrência deles dependia da fé.
Do ponto de vista da ciência fatual e tecnológica, o procedimento metodológico recomenda investigar o acontecimento extraordinário em questão até desvendar a lei subjacente ou o mecanismo psíquico ou social atuante. O cientista deverá, por exemplo, procurar por artifícios ocultos em estátuas que choram ou sangram, investigar processos fisiológicos pouco conhecidos em curas milagrosas, pesquisar e examinar mecanismos tecnológicos sofisticados cada vez mais utilizados para forjar aparições fantásticas de figuras como a de Jesus, de anjos, santos, santas, seres luminosos e cenários deslumbrantes no céu, nas nuvens, no mar, etc.
Santo Tomás afirmou em diferentes partes de sua obra que as coisas feitas por Deus, fora das causas por nós conhecidas, e, portanto, para além das leis naturais, são chamadas milagres. Ele não está dizendo que não se deve buscar o conhecimento das causas das coisas, mas sim que Deus pode fazer coisas que fogem ao campo do conhecimento humano.
Nas Escrituras se diz que Deus fez coisas admiráveis em favor de seu povo (por exemplo: Sl 126,3; Is 12,5, Jl 2,21). O evangelista Lucas, ao narrar a cura de um paralítico por Jesus, retrata esse espanto das pessoas diante do que aconteceu do seguinte modo: Todos ficaram admirados e glorificavam Deus dizendo: “Hoje vimos coisas maravilhosas” (Lc 5,26).
O evangelista João não fala em milagres de Jesus, mas sim em sinais que Jesus realiza. A beleza do sinal está no fato de que ele aponta para uma realidade que o ultrapassa. Os sinais que Jesus realiza apontam para a ação concreta e amorosa de Deus na história, indicam a proximidade e a presença do Reinado de Deus em Jesus e com Jesus. Ele mesmo é o maior de todos os milagres! Nada do que Jesus realiza supera o que ele é.
Importante ter presente que o milagre supõe sim o olhar de fé para que se possa captar o significado daquilo que Deus realiza. Mateus escreve no seu evangelho que Jesus não pôde realizar milagre algum em Nazaré, na sua terra, porque eles não tinham fé (cf. Mt 13,58). Não é necessariamente um milagre de Jesus que leva a alguém a crer nele, mas é o crer nele que abre a possibilidade à pessoa experimentar o milagre, maravilhar-se com a gratuidade da ação divina na história, admirar a própria vida no seu dinamismo, no seu mistério como um milagre acontecendo, agora.
O amor divino é a causa do milagre, e a vida do humano a sua finalidade. É o amor que gera, promove, cuida, defende a vida. Quem ama quer que o amado viva. “Vim para que todos tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10,10). Sendo fruto do amor, o milagre se realiza nos que amam e através dos que amam, mesmo que estes não o percebam como tal. “Quando foi que te vestimos, te servimos, te visitamos, quando foi que percebemos a tua presença Senhor?” Resposta do Senhor: “toda vez que demonstraram amor para com alguém, toda vez que aquilo que fizeram a alguém promoveu a (sua) vida!”
Em tempos tão marcados pela competição egoísta, pelo descaso para com a vida, pela insensibilidade para com o sofrimento do outro, a atitude de fazer da vida um serviço alegre e generoso aos outros, à criação, ao Evangelho da vida é algo admirável, misterioso, difícil de compreender, de explicar e de justificar; algo divino, algo da presença amorosa do divino; sim, um milagre!
Luiz Sureki, Sj é professor, pesquisador e diretor do departamento de Filosofia da FAJE