Geraldo De Mori, SJ
“A terra era informe e vazia, e sobre o abismo havia trevas, e o Espírito de Deus pairava sobre as águas” (Gn 1,2)
“O Espírito e a Esposa dizem: “Vem!” (Ap 22,17)
A festa de Pentecostes, celebrada no calendário litúrgico 50 dias depois da Páscoa, recorda, segundo a fé cristã, que a humanidade já vive no “tempo do Espírito”. Na Igreja do Brasil, a semana que se segue à festa da Ascensão do Senhor, é dedicada à oração pela unidade dos cristãos, que na maioria das outras Igrejas acontece na semana que antecede a festa da Conversão de São Paulo (25 de janeiro). Não se pode certamente negar que uma das dinâmicas provocadas pelo Espírito no coração dos fiéis é a de levá-los à comunhão, condição necessária para que haja unidade entre eles, um dos sinais, segundo o próprio Jesus, da comunhão que existe entre ele e o Pai, entre os creem nele no Pai, tornando a fé de quem crê credível aos olhos do mundo (Jo 17,21). Mas a ação do Espírito não se reduz a unir os corações dos que creem no Cristo, mas é muito mais ampla. Nem sempre é bem compreendida e muitas vezes é equivocadamente entendida.
No dia 22 de maio de 2023, por uma “feliz” coincidência, voltou para a casa do Pai um dos maiores teólogos que atuou na América Latina, o Pe. Victor Codina, jesuíta originário da Catalunha (Espanha), que durante muitos anos trabalhou na Bolívia, tendo dedicado grande parte de sua pesquisa, escritos e ensinamentos a um melhor conhecimento do Espírito Santo. Sua contribuição à pneumatologia (doutrina do Espírito Santo) é inegável e pode, sem dúvida, ainda iluminar a Igreja católica, que por séculos careceu, segundo vários estudiosos, de uma pneumatologia que fosse ao encontro das grandes questões dos fiéis, sendo mais marcada por uma cristologia preocupada em afirmar doutrinalmente o caráter institucional e dogmático da Igreja e de suas práticas.
Uma das convicções profundas que Codina buscou resgatar sobre a “doutrina” do Espírito Santo, é que ele vem “de baixo”, do mundo e da vida dos pequenos e pobres. Essa perspectiva é extremamente importante e necessita ser redescoberta e valorizada. Por um lado, esse “sopro” que vem “de baixo” é perceptível no maior fenômeno religioso contemporâneo, o pentecostal, que atinge não só o mundo evangélico/protestante, mas também católico, dando vitalidade, coragem, dinamicidade a fiéis procedentes das camadas mais humildes da população. Por outro lado, no âmbito da Igreja católica, o maior acontecimento que a marcou no último século, o Concílio Vaticano II, é, sem dúvida alguma, fruto da ação do Espírito, dando origem a uma vitalidade e criatividade impressionantes ao conjunto da Igreja. Na América Latina e no Brasil, foi, sobretudo no mundo dos pequenos e pobres que esse dinamismo mais fecundou, com a experiência das Comunidades Eclesiais de Base e tantas pastorais e grupos que nasceram com o intuito de empoderar os mais pobres, dando-lhes protagonismo e tornando-os sujeitos. Essa experiência encontrou nas teologias da libertação sua elaboração mais sistemática.
No Evangelho de João, Jesus, no diálogo com Nicodemos, afirma que o “vento sopra onde quer”, que se pode ouvir sua voz, mas não se sabe de onde vem nem para onde vai. O mesmo acontece com quem “nasceu do Espírito” (Jo 3,8). Essa afirmação é iluminadora para o tempo em que viveu o autor do Quarto Evangelho, mas também para os dias atuais. Conforme bem mostrou Victor Codina em suas inúmeras obras sobre o Espírito Santo, por muito tempo ele foi ignorado na existência concreta dos fiéis. A “inflação” de denominações e iniciativas que se dizem movidas por ele nas últimas décadas, além de ser uma espécie de reação a um esquecimento, é também sinal de um desejo profundo que atravessa não só o coração humano, mas o conjunto da criação. Ilustrativo disso é o segundo versículo com o qual começa a Bíblia, que diz que antes da criação o “Espírito pairava sobre as águas” (Gn 1,2), numa clara indicação de que é dele que brota a força criadora da Palavra. Algo parecido acontece nos versículos finais do Apocalipse, último livro da Sagrada Escritura: “o Espírito e Esposa dizem: “Vem!” (Ap 22,17), mostrando que o grande desejo de realização final que atravessa o coração do ser humano redimido (a Igreja = Esposa, no texto em questão) é suscitado pelo Espírito.
A presença do Espírito nos corações dos fiéis e no conjunto da Igreja, sobretudo nos dos que mais experimentam sua necessidade, a saber os “pobres”, os “de baixo”, por se saberem necessitados de sua ação transformadora, salvífica, protetora, tem sido redescoberta nas últimas décadas pela teologia como sendo a fonte mesma da “graça” de Deus. Durante séculos, a teologia da graça foi objeto de grandes debates e controvérsias no seio das Igrejas cristãs do Ocidente, tendo início, na época patrística, com a controvérsia pelagiana, que, em seguida deu origem aos debates sobre a relação entre graça e liberdade. Na época moderna, essa temática está na origem da reforma protestante, com a afirmação da “sola gratia”, de Lutero, e da doutrina da predestinação, de Calvino, que levaram o Concílio de Trento a elaborar sua teologia da justificação, à qual se seguiram grandes discussões no seio da Igreja entre jesuítas e dominicanos, jesuítas e jansenistas, dando origem aos tratados sobre a graça que a “coisificaram”, ou seja, fizeram da graça algo que se adquire, através da oração ou dos “méritos” dos fiéis.
As teologias do Espírito Santo elaboradas a partir do diálogo entre as teologias dos “dois pulmões” da Igreja, como falava João Paulo II ao se referir ao cristianismo do Ocidente e ao do Oriente, mostraram que a graça, que é o Cristo, é comunicada a cada fiel e, como reconhece o Concílio Vaticano II, a todo ser humano, pela ação do Espírito Santo. Esta ação é, para quem crê no Cristo, uma ação que coloca em seu coração a fé-confiança de que o caminho trilhado por Jesus, a saber, sua vida, seus ensinamentos, sua morte e ressurreição, é o caminho que conduz à máxima realização de sua própria humanidade e da humanidade do outro. O que a Igreja compreende como salvação é, no fundo, essa fé-confiança de que em Cristo se pode alcançar essa plenitude. Quem suscita essa fé-confiança no coração de quem crê é o Espírito Santo e é ele também que conduz a pessoa à busca de assemelhar-se cada vez mais a Jesus, lutando contra tudo o que a afasta desse caminho de plenitude. Por isso, o Espírito que age é o da liberdade.
Mas, a fé-confiança, não se vive abstratamente, mas em uma comunidade de fé, a Igreja. Nela, cada fiel é chamado a sair de si, abrir-se ao outro, viver com os que compõem a comunidade uma experiência de comunhão, que tem na eucaristia sua expressão simbólica e sacramental, mas produz ações de caridade que introduzem no mundo a nova humanidade, transformando as relações de cada um consigo, com o outro, com a criação em mesa de comunhão, perdão, reconciliação. No fundo, a ação do Espírito, transfigurando a vida do fiel, é uma ação que produz vida e é geradora de vida para quem crê nesta ação e para aqueles/as que vão se beneficiar de sua ação no mundo. Nesse sentido, como tão bem expressavam os antigos, quando a língua da teologia era o latim, a ação do Espírito Santo é a de um “Spiritus libertatis, Spiritus Charitatis, Spiritus Vitae”, ou seja, Espírito que liberta a liberdade, Espírito que se traduz em caridade, vivida na eucaristia como comunhão, Espírito de vida, que inaugura no mundo a nova criação.
Geraldo De Mori, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE