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“A Cabana” – Algumas considerações sobre a atitude de julgar

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Luiz Sureki, SJ

Lançado em 2007 nos Estados Unidos, o livro logo se tornou um best seller! Em 2017, “A Cabana” já estava no cinema. Provocou nas pessoas reações adversas; não só porque apresentou uma “Trindade” divina bem pouco convencional, em que o Pai e o Espírito Santo eram mulheres (uma mulher negra mais madura com traços africanos e a outra mulher magra e mais jovem com traços asiáticos, respectivamente), mas também porque colocou questões existenciais muito profundas, com as quais se enfrentam hoje muitas pessoas.

Sabemos pelo enredo da estória que a filhinha caçula de Mackenzie (Mack Phillips), chamada Missy (Amelie Eve), foi raptada durante um passeio de lazer da família no lago/floresta, violentada e morta por um assassino desalmado. Era ela tão somente uma criança, espontânea, singela, meiga, adorável. O ocorrido com ela era demasiado revoltante para que o pai – e acredito que para qualquer um de nós – pudesse encontrar alguma justificativa e alguma paz. O que reinava no coração de Mackenzie era um puro e revoltante sentimento de ódio, de revolta e de vingança. Simplesmente não havia justificativa. E era justamente isso que o deixava revoltado, especialmente para com Deus. Numa determinada cena, acompanhado pelo Logos encarnado (o Cristo/Filho), Mackenzie chega a uma espécie de caverna para um encontro com a Sabedoria divina.

Como num trailer de um filme reproduzido de modo pouco mais acelerado, Sofia mostra a Mackenzie variadas cenas que retratavam, ao longo da história, muitas das atrocidades humanas: violência física de todo tipo, guerras sangrentas, crimes horrendos, execuções impiedosas, atentados premeditados, enfim, o sofrimento e a morte de incontáveis pessoas: homens, mulheres, crianças. Sofia lhe apresentava distintas pessoas, cujos atos abomináveis praticados não deixava dúvidas ao julgamento condenatório de Mackenzie, que neste momento está sentado na posição que ocupa um juiz na sua cátedra. Em certo momento, Sofia introduz a questão de “Deus”. Eis como se segue a conversa entre os dois:

Sofia: “E quanto a Deus, ele não é culpado? Foi ele que deu início a tudo. Principalmente se já sabia o resultado”.

Mackenzie: “Você quer que eu fale? Com toda certeza, Deus é culpado!”

Sofia: “Bom… Se é tão fácil assim para você julgar Deus, então deve escolher um de seus filhos para passar a eternidade no céu; os outros irão para o inferno”.

Mackenzie: “Não, eu não posso”.

Sofia: “Não pode porquê? Só estou pedindo para fazer o que acredita que Deus faz. Então, quem vai para o inferno? Podia escolher a Kate… ou o Josh… [ambos seus filhos]. Mackenzie, faça a sua escolha!”

Mackenzie: “Eu não quero mais fazer isso. Eu não posso fazer isso!”

Sofia: “Por que não pode?”

Mackenzie: “Eu não posso, eu não quero”.

Sofia: “Você deve”.

Mackenzie: “Isso não é um jogo”.

Sofia: “Precisa fazer isso”.

Mackenzie: “Olha só, isso não é justo!”

Sofia: “Tem que fazer!”

A atitude de julgar/condenar de Mackenzie só começa a mudar qualitativamente quando seus próprios filhos (Kate e Josh) são evocados e entram na fila do julgamento. É claro que eles não tinham cometido atrocidades semelhantes às daqueles que antes Mackenzie, como juiz, havia convictamente julgado e condenado. No entanto, o homem Mackenzie já não conseguia mais, agora como pai, continuar na sua função de juiz e concluir o seu julgamento sobre os seus filhos, condenando um e salvando o outro. Com efeito, não conseguimos julgar e condenar nossos filhos com a mesma severidade que aplicaríamos ao julgar outras pessoas.

Quando pedimos a Deus que faça justiça e puna o pecador, criminoso ou delinquente, como nós mesmos o faríamos (se pudéssemos), não estamos considerando a possiblidade de amanhã sermos nós mesmos os réus de algum pecado, crime ou delito semelhante! Além disso, não estamos considerando a possível parcela de culpa que temos pela criminalidade e delinquência existentes – por omissão e/ou falta de solidariedade nossa para com os outros.

Pensamos que somos capazes de ser um juiz imparcial em qualquer circunstância, como se tivéssemos presente toda a história, todos os dados e informações objetivas/circunstanciais e subjetivas/psicológicas. Julgar só parece fácil enquanto os julgados são os estranhos. Mas, quando pessoas que amamos, começando pelos nossos próprios filhos, são os que devem ser julgados e condenados, a função de julgar/condenar se revela insuportável. Assim como alguém movido pelo ódio contra uma pessoa não consegue enxergar bem algum nela no momento de julgá-la, assim também não consegue enxergar nela o mal alguém movido pelo amor. Daí a sabedoria de Jesus: “Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados” (Lc 6, 37).

Para superar o suposto direito de julgar/condenar é preciso alargar o horizonte, reconciliar, perdoar. O processo que envolve perdão é bem doloroso, pois é preciso libertar-se do papel de juiz e, pouco a pouco, cessar com aqueles juízos condenatórios abafados, reprimidos, recalcados, escondidos e dissimulados, que implicitamente são dirigidos a Deus! Recorde-se de Mackenzie no diálogo acima: “Você quer que eu fale? Com toda certeza, Deus é culpado!” Vê-se que nem sempre o sincero reconciliar-se com Deus toma a forma de um pedido de perdão a Deus; afinal, como vou pedir perdão a Deus, se considero (explícita ou implicitamente) Deus como o culpado da minha dor?

O problema existencial de Mackenzie é também o de muitos de nós! Quando algo trágico nos acontece, nossa relação com Deus pode facilmente se tornar problemática. Agora queremos explicação, justificação; queremos mostrar a Deus o quanto nós somos bons e justos, e, assim, indiretamente, lhe dar a entender o quão mal e injusto ele foi para conosco ao permitir que uma desgraça ou infortúnio nos acontecesse. Somos invadidos em tais situações por um sentimento estranho porque ambíguo. Por um lado, sentimos que não podemos culpar diretamente Deus pelo mal que um ser humano concreto (nos) fez; mas, por outro, sentimos que indiretamente Deus deveria ser culpado por ele não ter impedido aquela pessoa de (nos) fazer o mal que ela (nos) fez ou por não a ter punido severamente tão logo ela cometesse o/algum mal a nós. É somente no momento em que Mackenzie, como pai amoroso, desiste de julgar seus filhos, que ele começa a entender que Deus, como o Pai-Amoroso de todos, se encontra numa situação análoga à dele no momento de julgar e que, por isso, tampouco está julgando Mackenzie pelo seu ressentimento, sua revolta interior, sua crise de fé.

O amor nos torna capazes de abdicar do (por nós) suposto direito de vingar, julgar e condenar segundo nossos próprios critérios pessoais. Isso ocorre especialmente quando o amor de Deus derramado em nossos corações nos faz perceber que “ele nos perdoou de todas as nossas faltas, anulou o documento que nos era contrário e o eliminou, cravando-o na cruz” (Col 2,13-14). “Não somos bons porque amamos a Deus, mas podemos ser bons porque Deus nos ama”, dizia frequentemente o saudoso professor jesuíta Ulpiano Vázquez. O fato é que como juízes nós somos péssimos! Se nosso julgamento (quase sempre muito mais subjetivo do que objetivo) em relação aos outros for aplicado de igual modo pelos outros em relação a nós mesmos, muito provavelmente, o consideraríamos como injusto! “O Senhor não age conosco segundo nossos pecados, e não nos retribui segundo nossas iniquidades. […]. Como um pai se compadecesse dos filhos, assim se compadece de nós o Senhor” (cf. Sl 103, 10.13).

Concluamos com a pergunta de Sofia: “E quanto a Deus, ele não é culpado? Foi ele que deu início a tudo. Principalmente se já sabia o resultado”. Penso que um esboço para uma resposta a esta grande questão existencial pode advir desde uma profunda compreensão teológica da fascinante afirmação bíblica que diz: “… o Cordeiro de Deus foi imolado antes da criação do mundo” (cf. Ap 13, 8).

Luiz Sureki, SJ é professor e pesquisador no Departamento de Filosofia da FAJE

 

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