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A crise da Igreja católica e a Teologia da Libertação

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Geraldo De Mori, SJ

Tende entre vós os mesmos sentimentos que havia em Cristo Jesus” (Fl 2,5)

Clodovis Boff lançou recentemente o livro A crise da Igreja católica e a teologia da libertação, que retoma artigos publicados em 2007 e 2008 na Revista Eclesiástica Brasileira (REB), nos quais fazia uma crítica severa a esta corrente teológica que ele ajudou a sistematizar entre as décadas de 1970-1990, além de incluir novos textos, insistindo nas críticas então apresentadas. Muitos grupos, de perfil mais conservador e tradicionalista, têm difundido, em várias mídias, trechos de entrevistas dadas pelo teólogo catarinense nas últimas semanas, utilizando-se dessa obra para condenar essa corrente da teologia latino-americana nascida no período pós-conciliar. Este texto não tem a pretensão de responder às questões levantadas por Clodovis Boff nem de reagir às leituras dos que atacam ou defendem a teologia da libertação. Sua intenção é retomar e aprofundar, sob um outro ponto de vista, a reflexão sobre a “crise” da Igreja católica no Brasil e sobre o pensamento que estaria na raiz desta crise: o da teologia da libertação.

As críticas de Clodovis Boff à teologia da libertação remontam ao artigo de 2007, no qual ele convocava essa corrente de pensamento teológico latino-americano a uma “volta ao fundamento”, que, segundo ele, é Deus e não o pobre, como tinha sido feito pelos teólogos da libertação. Seu texto, escrito após a Conferência de Aparecida, provocou uma reação entre alguns teólogos, dentre os quais, Luiz Carlos Susin, Érico Hammes, Leonardo Boff e Francisco Aquino Júnior, que questionaram a leitura do teólogo catarinense. Este, por sua vez, escreveu uma “réplica”, publicada em 2008, reiterando seus argumentos. O contexto dos atuais debates sobre esse texto não é, porém, o que se seguiu à V Conferência do CELAM, mas o do “rescaldo” da polarização que ainda “envenena” as relações na sociedade e igrejas cristãs do Brasil. Mais que um “déjà vu”, o que está em jogo na “disputa de narrativas” que envolve essa obra do teólogo catarinense tem um viés político-ideológico, mas também uma visão teológica e eclesial.

O viés político-ideológico é o que tem tensionado a sociedade brasileira desde 2013, cada vez mais envolvendo a religião e as igrejas cristãs. A incapacidade dos partidos de esquerda em entender e encaminhar as insatisfações das manifestações de junho de 2013 levou ao surgimento de uma extrema direita fortemente articulada, presente nas mídias digitais, promotora de desinformação, tocando em temas fortemente polêmicos, envolvendo “pautas de costumes”, atraindo para si os grupos religiosos preocupados com as mudanças culturais e antropológicas que perpassam as sociedades ditas pós ou hipermodernas. No mundo católico, as disputas que até então opunham “conservadores” e “progressistas”, identificados respectivamente com fiéis e grupos procedentes da religiosidade popular e de movimentos afinados com a renovação carismática, por um lado, e fiéis e grupos envolvidos com as Comunidades Eclesiais de Base e as pastorais comprometidas com a defesa da justiça, por outro lado, transformaram-se, nos últimos anos, em polarização, dificultando ou inviabilizando o diálogo e o caminhar juntos. De fato, em muitas mídias de inspiração “católica” tudo o que chama para o compromisso social é identificado como sendo da teologia da libertação e posto sob suspeita. Muitas pessoas e grupos ligados a essa perspectiva têm se utilizado da obra de Clodovis Boff para anatematizar a teologia que ele ajudou a construir e da qual tem se afastado, embora esse afastamento não esteja associado à polarização, para a qual sua obra tem se prestado no atual debate ideológico-religioso.

O viés teológico e eclesial da obra de Clodovis Boff, que merece ser aprofundado, tem a ver com o próprio título de seu livro, que recorre à categoria da “crise” para falar da Igreja católica no Brasil hoje. O título é, porém, enganoso e, parece ser voluntariamente ambíguo, pois leva a pensar que a “crise” em questão é consequência da teologia da libertação. Na verdade, sua reflexão tem uma pretensão mais abrangente, como atestam os vários volumes que escreveu nos últimos anos sobre o sentido, nos quais se afasta não só da teologia da libertação, mas também da chamada “virada” antropológica ocorrida na teologia com o Concílio Vaticano II. Contudo, essa virada já havia ocorrido na cultura ocidental deste o início da época moderna, tendo em Galileu Galilei seu expoente no campo da ciência, e em René Descartes, seu expoente no campo da filosofia. Mais que a “physis” (= o mundo) e o “Theos” (= Deus), o que passa a ocupar o centro do conhecimento e da ação humana é o “anthropos” (= ser humano). Apesar de centrada no humano, a virada antropocêntrica ainda era determinada por algumas instituições “fortes”, como a Igreja, a família, o Estado. O advento do indivíduo pós-moderno desconstrói, porém, essas instituições e produz uma enorme fragmentação, que está na origem do atual pluralismo que marca as sociedades contemporâneas. A “crise” da Igreja se inscreve na crise de um mundo que, do ponto de vista religioso, não mais é marcado pelo modelo de cristandade, em que a Igreja católica e, no máximo, outras denominações cristãs, eram as únicas instituições provedoras de sentido/salvação.

A “crise” que Clodovis Boff parece associar à teologia da libertação ou à teologia que deu origem ao Concílio Vaticano II, é muito mais radical e profunda. Para pensá-la, é preciso ir “mais fundo” e, talvez, com um olhar menos pessimista que o seu e mais afinado com o paradoxo do Deus cristão. De fato, como tão bem mostrou o Apóstolo Paulo, o lugar para pensar toda a crise no cristianismo, mesmo a do atual momento da Igreja católica do Brasil, é a cruz de Jesus e a releitura que a partir dela foi feita do mistério do próprio Deus, em sua “kénosis” (= abaixamento, esvaziamento, humilhação), ou seja, a partir do “não apegar-se” à “condição” que era a sua, mas do assumir a condição outra, no caso do Cristo Jesus, como recorda o hino aos Filipenses, o de “não considerar um privilégio ser igual a Deus”, mas esvaziar-se, “assumindo a forma de servo” (Fl 2,6-7) e a dos “malditos” (Gl 3,13). Somente uma teologia capaz de pensar a crise como “kénosis” é habilitada a não se enredar em falsos argumentos nem a se deixar manipular pelas “ideologias de plantão”, colocando-se, como aquele que foi obediente até à morte na cruz (Fl 2,8), ao serviço dos crucificados, encarnação, em cada tempo e lugar da história, do humano que deve ser elevado, reconhecido, glorificado, tornando o mistério pascal e o mistério da encarnação novamente vivo, atual, eficaz, presente. Ao contrário do que diz Clodovis Boff, não são os pobres que levaram os teólogos da libertação a substituírem o fundamento da teologia, que é sempre Deus, mas as leituras que se utilizam do nome de Deus transformando-o em ídolo e esquecendo-se de seus rostos redivivos (Mt 25,31-46). Como tão bem diz Dom Hélder Câmara em seu discurso conclusivo da Missa dos Quilombos, o caminho dos pobres é “evangelho vivo” e não “comunismo”, como muitos ainda hoje continuam a dizer com relação à teologia da libertação. Oxalá os debates em curso ao redor da obra do teólogo catarinense possam estimular os fiéis a terem o olhar fixo em Jesus, inaugurador e consumador da fé (Hb 12,2), que se fez pobre por “nossa causa e nos enriqueceu com sua pobreza” (2Cor 8,9).

 

Geraldo De Mori, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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