Carlos Roberto Drawin
Todos nós, os viventes humanos, temos a experiência dos afetos: ora somos tomados pela alegria e o otimismo, ora pela tristeza e o tédio. Os afetos parecem provir das diversas situações pessoais nas quais nos encontramos e das relações nas quais nos engajamos. Como essas situações e engajamentos não dependem inteiramente de nós, de nossas intenções, razões e quereres, elas nos afetam e desencadeiam reações inesperadas, variáveis, oscilantes e, às vezes incontroláveis. Elas costumam surpreender aos outros e a nós mesmos quando, por exemplo, uma pessoa aparentemente calma e educada tem uma explosão de raiva e um comportamento agressivo por algum motivo aparentemente banal. As ocorrências no trânsito, a competição nos ambientes profissionais e institucionais, os conflitos familiares testemunham com frequência esse caráter enigmático de nossos afetos. E, quando são muito negativos e intensos, eles nos adoecem e se manifestam em nosso corpo. Aqui aparece algo de difícil compreensão a desafiar filósofos e cientistas de todos os tempos: como se dá a interação do corpo com a mente?
Por um lado, bem sabemos como os processos corporais afetam nossos estados de ânimo, nossas disposições e humores: quando bebemos um pouco mais podemos nos tornar mais desinibidos, falantes, extrovertidos e também mais agressivos, impulsivos e deprimidos. Tornamo-nos diferentes do que normalmente somos e, por isso, depois da festa e das explosões emocionais resta-nos um sentimento melancólico. Como se alguma coisa tivesse sido perdida. O mesmo acontece quando alguém toma drogas ou usa medicamentos: os efeitos psíquicos nem sempre são fáceis de serem previstos. Todavia, acreditamos e com boas razões, que a ciência será capaz de conhecer de modo cada vez mais satisfatório os processos corporais e nos ajudar a lidar com eles e suas incidências psicológicas. E quando acontece o oposto? Quando uma ideia ansiosa, uma desilusão amorosa, um sonho desfeito atingem o nosso corpo? Nesse caso ao invés do corpo afetar a mente, não seria o contrário? Afinal, o que é a mente? Rios de tinta já foram vertidos sobre o assunto e os psicólogos, psicoterapeutas, psiquiatras e orientadores religiosos muito escreveram e descreveram acerca de nossa vida mental, cuja riqueza e tortuosidade parecem desafiar todas as classificações e modelos explicativos. Tudo isso levou filósofos e religiosos a conceberem o ser humano como uma junção de um corpo físico e de uma alma espiritual como duas realidades subsistentes e heterogêneas, mas e por causa disso permanece o mistério, pois como sendo tão distintas elas interagem? Seria o corpo apenas um conjunto de partículas físicas e a alma uma espécie de substância diferente que habita o nosso corpo material?
Talvez possamos adotar uma outra visão do problema e pensarmos o espírito não como uma outra coisa dentro de nós e sim como um dinamismo e uma relação presentes em todas as dimensões de nossa vida. O dinamismo do espírito pode ser claramente percebido em nossos desejos. Quando desejamos algo e tão logo o alcançamos, ficamos um pouco decepcionados e, costumeiramente, outro objeto é posto em seu lugar, talvez com a expectativa de nele encontrarmos a resposta final para o nosso desejo. E aí também reside o aspecto relacional do espírito: o nosso desejo é sempre desejo de outra coisa, outros objetos, outras pessoas, outros caminhos e possibilidades de existir. A palavra “existência” significa isso mesmo: estar fora de si, lançado no mundo, estando e sempre sendo relação com o outro. Esse movimento dinâmico e relacional, essa abertura impossível de ser inteiramente bloqueada poderia ser chamada de transcendência. O espírito não é, pois, uma coisa qualquer, é impulso insaciável de transcendência. Onde ele está? Oculto em algum lugar? Seria assim se o espírito fosse uma coisa, não o sendo, porém, ele se manifesta em todos lugares e sopra onde quer. Inclusive no corpo. Porque o corpo sendo nossa carne e nossa fragilidade é também a nossa primeira forma de expressividade. Quando somos subjugados pelas imagens de uma bela dança, não vemos apenas um corpo em movimento ou um artefato anatômico, e quando somos enlevados por uma bela música, não escutamos somente ondas sonoras, vibrações mensuráveis. Como diz o poeta, nessas ocasiões “alguma coisa acontece no meu coração”. Eis aí a marca do espírito na carne e os exemplos se multiplicam indefinidamente, seja ao provarmos um bom vinho, lermos uma poesia, aprendermos algo novo, vislumbramos um gesto de amor. Tudo é espírito. Mas, podemos nos perguntar, essa não seria uma visão romântica e ingênua?
Penso que não. Não somos apenas espírito, porque se ele é apelo de transcendência e convite à liberdade, ele também é um espinho em nossa carne, uma vez que todo apelo e todo convite perturbam a nossa inclinação ao fechamento em nós mesmos, nos arranca de nossa tendência a julgarmo-nos o centro do mundo. As nossas frustrações e temores, nossas limitações físicas e psíquicas desmentiriam a nossa vocação espiritual? Creio, ao contrário, que nossas vivências, mesmo quando nos aprisionam, testemunham a favor do espírito, porque são como um clamor imanente da carne em seu anseio por liberdade. Talvez melhor fosse colocarmo-nos na disposição da escuta para acolher e consentir com aquilo que nos transcende. O infinito não cabe nos estreitos espaços de nosso entendimento. O grande Santo Agostinho, pensador da inquietação existencial, ensinava: “a mente não pode compreender a si mesma, porque é a imagem de Deus”.
Carlos Roberto Drawin é professor e pesquisador no departamento de Filosofia da FAJE