Clovis Salgado Gontijo
Uma coletividade é guardiã do dogma; e o dogma é um objeto de contemplação para o amor, a fé e a inteligência, três faculdades estritamente individuais. Surge daí um mal-estar do indivíduo no cristianismo, quase desde a origem, e, sobretudo, um mal-estar da inteligência. Não podemos negá-lo.[1]
Esta passagem de uma famosa carta de Simone Weil (1909-1943), na qual a pensadora sintetiza sua “autobiografia espiritual”, poderia se aplicar a um mal-estar por mim experimentado, há algumas semanas, diante não propriamente de um dogma, mas de um conteúdo de fé. Era o dia 6 de julho, data em que se comemora, no calendário litúrgico, a festa de Santa Maria Goretti (1890-1902), e decidi conhecer um pouco mais sobre a mártir italiana. Após algumas buscas pela Internet, descobri algo intrigante: o reconhecimento da jovem, por religiosos e leigos católicos, como um modelo do perdão. De início, esse ponto em particular não só me intrigou, mas também me incomodou, seja pela lembrança de graves problemas sociais contemporâneos aos quais poderíamos associar o perdão da santa e o contexto desse gesto, seja pela influência do pensamento de Vladimir Jankélévitch (1903-1985) sobre a minha compreensão teórica do tema.
A fim de esclarecer como se daria a associação entre Maria Goretti e o perdão, cumpre rever algo da sua curta biografia, mais especificamente as suas últimas e trágicas horas de vida. Na tarde do dia 5 de julho de 1902, Maria, então com 11 anos de idade, encontrava-se sozinha em casa, cuidando das tarefas domésticas, enquanto a mãe, já viúva, e os irmãos mais velhos trabalhavam arduamente na lavoura, tentando garantir a sobrevivência numa Itália assolada pela miséria. De repente, foi abordada por um jovem de 20 anos, chamado Alessandro Serenelli, cuja família coabitava o mesmo imóvel que a família Goretti. Serenelli, que havia tentado estuprar a menina outras vezes, ameaçou matá-la, já usando de violência, caso não cedesse à sua voluptuosa investida. Como Maria preferiu a morte a “pecar contra a castidade”, Alessandro lhe atingiu com treze facadas. Ao sair da casa, o agressor se deu conta de que a vítima ainda não havia morrido e retornou para deferir um último golpe. Por um milagre, Maria foi conduzida com vida a um hospital, onde resistiu por mais algumas horas. Nesses derradeiros momentos, teve forças de declarar que havia perdoado o seu algoz e esperava estar ao seu lado no Paraíso celeste. Quanto a Serenelli, este foi capturado e, após cumprir longa sentença e converter-se graças a uma visita em sonho de Maria, pediu perdão à mãe da menina e tornou-se frade capuchinho, falecendo aos 87 anos. Devido ao seu extremo arrependimento, à sua vida de oração como religioso e à sua proximidade com a querida santa italiana (de cujo processo de canonização participou decisivamente), chega-se a cogitar hoje a sua beatificação.
Antes de examinar o perdão alegadamente modelar concedido por Maria Goretti, cabe aqui ressaltar alguns dos ecos, também desconfortáveis, que esse terrível episódio possui com o tempo presente. Por um lado, ainda presenciamos, talvez com mais horror que no início do século XX (no qual era praxe o casamento de moças adolescentes), situações de pedofilia e feminicídio. Contudo, na linguagem de hoje, a recusa de Maria Goretti não seria apenas a recusa de “pecar contra a castidade”, mas, sobretudo, de ser vítima de um estupro. Portanto, a terminologia empregada pela mentalidade religiosa da época, hoje retomada por grupos conservadores, poderia mascarar o ato de violência, pois também há “pecados contra a castidade” consentidos. E, mesmo se a menina tivesse cedido à investida de Serenelli, não teria sido, de fato, uma relação consentida, pois a liberdade individual praticamente se anula numa situação de coação física. Nesse ponto, identifico em mim outro incômodo, ao confirmar a ênfase dada repetidamente pela Igreja, durante tantos séculos, à moral sexual, responsável, em grande medida, pela canonização de Maria Goretti. Por outro lado, a conversão e a possibilidade de beatificação de Serenelli nos remete, inevitavelmente, à figura, por todos aqui bem conhecida, de Guilherme de Pádua, que também assassinou uma mulher, Daniella Perez, com um instrumento perfurocortante, foi preso por breve período, converteu-se, tornou-se pastor da Igreja Batista da Lagoinha e pediu perdão à mãe da sua vítima. Obviamente, não cabe aqui questionar a sinceridade da conversão e do pedido de perdão de Alessandro Serenelli (ou de Guilherme de Pádua). No entanto, num momento em que a sociedade luta para combater toda a espécie de violência contra a mulher, caberia ventilar a beatificação de um feminicida?
Tocamos, aqui, numa espinhosa questão tratada pelo mencionado filósofo francês Vladimir Jankélévitch, autor de profundas reflexões sobre o perdão no período pós-Holocausto, no qual se fez premente a pergunta pela possibilidade de se perdoar. No polêmico ensaio “L’Imprescriptible” (1965)[2], Jankélévitch reconhece que tal possibilidade ocorre preferentemente na relação entre um “eu” e um “tu”, mas se questiona se ela também se daria em relações nas quais uma das partes equivale a uma coletividade. Assim, faria sentido perdoar um ofensor coletivo como a nação alemã (e a Igreja pela Inquisição, atendendo ao pedido de São João Paulo II, muitos anos mais tarde) ou perdoar no coletivo, especialmente quando as vítimas já se foram e não tiveram a oportunidade de perdoar? No caso de Serenelli, Maria Goretti, segundo os relatos, teve a graça de perdoá-lo, mas também a Igreja – e, assim, a sociedade – poderia dar esse passo, considerando a sua – e a nossa – responsabilidade diante da violência contra a mulher? Caberia à Igreja seguir o ato individual da mãe de Maria e dizer: “se a minha filha o perdoou, não posso fazer diferente”, elevando-o, por fim, aos altares?
Chegamos, portanto, ao perdão dado e irradiado pela frágil e forte santa italiana. Afastando-nos, por um momento, das suas implicações sociais, há nele um aspecto que me desconcerta por não se encaixar precisamente nas reflexões jankélévitchianas sobre o tema. Explica o filósofo, na sua principal obra dedicada ao tema do perdão interpessoal (Le Pardon, 1967), que este possui importante pré-requisito: embora ocorra, como centelha, num instante, embora seja capaz de abolir o rancor de uma vez por todas, ele não poderia ser concedido imediatamente após a ofensa. Nas palavras do pensador,
o perdão exige que um mínimo intervalo se abra entre a ofensa e a absolvição, que tenhamos tido tempo, mesmo que durante dez segundos, de ter aversão ao pecador: o perdão requer que um rancor infinitesimal tenha tido, ao menos, tempo de se formar; pois o ressentimento, sentimento sobre o sentimento, sentimento com um expoente, não existe sem a temporização. Sem essa temporização, sem esse intervalo que perpetua a injúria, em que o perdão encontraria algo para perdoar?[3]
Tendo uma vaga lembrança dessa passagem, estranhou-me o fato de que, no relato em questão, Maria Goretti tenha perdoado tão rapidamente o seu assassino. Ocorreu-me que, talvez, a jovem, por sua pureza e santidade, não tenha, de fato, experimentado algum ressentimento por Serenelli. Não obstante, tal hipótese não deixaria de implicar alguns problemas. Em primeiro lugar, se considerarmos o pré-requisito jankélévitchiano e defendemos que Maria não tenha se ofendido em nenhum momento, esta não poderia ser considerada um modelo do perdão. Conforme mostra o filósofo reiteradas vezes em Le Pardon, a operação do perdão se caracteriza como uma passagem do rancor ao amor. Assim, se não houver rancor, a graça não agiu para convertê-lo no seu oposto. Em segundo lugar, cogitar que uma criança de 11 anos não tenha sentido raiva e, até mesmo, repugnância por seu assassino e estuprador em potencial seria colocá-la num lugar sobre-humano. Nesse sentido, não seria desumano elegê-la como modelo de conduta em resposta a hediondas ofensas? Podemos esperar de uma pré-adolescente que chegue ao ponto de desejar sentar-se, no Céu, ao lado de quem pretendeu ou logrou violentá-la? Contudo, a leitura atenta da passagem de Jankélévitch citada ainda guarda uma possibilidade para interpretarmos, como legítimo perdão, a declaração atribuída à santa no seu leito de morte. Se a jovem tiver abominado o seu assassino por duas horas ou por, ao menos, dez segundos, o seu perdão terá sido efetivo.
É claro que poderíamos questionar a exigência estabelecida pelo filósofo e recordar que, para ele, apesar da sua origem judaica, o epítome do perdão se encontra na parábola do filho pródigo ou do Pai misericordioso (Lc 15,11-31). Nela, não há qualquer menção a um possível traço de ressentimento ou ira no Pai pelos atos inconsequentes do filho. De todo modo, também nesse contexto, o modelo parece alto demais para nós, pois o Pai misericordioso é o Pai com “P” maiúsculo, ou seja, o próprio Deus apresentado por Cristo, muito acima dos ressentimentos e dos inconstantes sentimentos humanos. Ainda assim, não há como negar que o perdão perderia a sua força e o seu caráter milagroso, se não implicasse uma transformação radical dos nossos afetos e das atmosferas em que nos encontramos inseridos (dinâmica, certamente, experimentada pelo filho pródigo, que passa não do rancor ao amor, mas da miséria ou do abandono à inclusão e à alegria).
Se ignoramos o que se dá na interioridade do Pai enquanto o filho está ausente (a parábola só nos diz que o primeiro se encheu de compaixão ao avistar o segundo tornando à casa), sabemos que o reencontro entre eles vem acompanhado de uma reconciliação, de uma “vita nova”[4] para ambos. Talvez seja justamente na reconciliação que a passagem gratuita para o amor se realiza de modo mais pleno. Assim, o efeito ou o alcance do perdão acaba por se limitar quando dado no leito de morte do ofensor ou do ofendido, como no caso de Maria Goretti, ao menos no que concerne à renovação da relação entre ambos no plano terreno.
Para concluir, acredito que a história de Maria Goretti amplifique a problemática do próprio perdão. Por isso, pode se revelar tão desconfortável, especialmente quando a contemplação da inteligência se dissocia da contemplação do amor. Como defende Jankélévitch, “o perdão puro é um evento que, talvez, jamais tenha ocorrido na história humana; o perdão puro é um limite que quase não é psicológico, um estado de ápice que quase não se vive”[5]. Contudo, nesse “quase”, irrompe para nós uma possibilidade que beira o sobre-humano, que transcende a proporcionalidade entre as causas e os efeitos. Assim, quem sabe, todo o modelo de perdão se apresente como um “gesto surpreendente e sobrenatural”[6]. Vê-lo encarnado e fixado numa pessoa de carne e osso como Maria Goretti, escandalizando as expectativas lógicas, teria mesmo que soar como algo “quase” absurdo ou, na melhor das hipóteses, como um elevado desafio.
Clovis Salgado Gontijo é professor e pesquisador no departamento de Filosofia da FAJE
[1] Simone Weil. Espera de Deus: cartas escritas de 19 de janeiro a 26 de maio de 1942. Tradução: Karin Andrea de Guise. Petrópolis (RJ): Vozes, 2019. p. 46.
[2] Esse ensaio, desenvolvido a partir de uma carta do leitor escrita pelo filósofo e publicada no jornal Le Monde em 03/01/1965, encontra-se incluído na publicação póstuma L’Imprescriptible (Paris: Seuil, 1986).
[3] Vladimir Jankélévitch. Le Pardon. Paris: Aubier-Montaigne, 1967. p. 31. Tradução nossa.
[4] Vladimir Jankélévitch. Op. cit., p. 194. Tradução nossa.
[5] Vladimir Jankélévitch. Op. cit., p. 149. Tradução nossa.
[6] Vladimir Jankélévitch. Op. cit., p. 184. Tradução nossa.