Marília Murta de Almeida
Pensar sobre a liberdade é uma das coisas que mais tenho feito pela vida afora. Quanto mais penso, mais perplexa fico. Todos os raciocínios me induzem a pensar que não há liberdade alguma em nossa vida marcada por determinações de todos os tipos, materiais, psíquicas, inconscientes, biológicas, racionais, espirituais e mesmo indetermináveis. Isso porque jamais fui capaz de enxergar em mim mesma o início de um desejo ou o lance final que levou a uma decisão. Parece haver sempre algo incognoscível, que claramente não sou eu, que atua neste instante decisivo. Entretanto, nunca pude abandonar a convicção de que sou livre e de que, toda vez que não me sentir livre, devo lutar para reconquistar a sensação da liberdade. E, então, talvez a liberdade seja uma sensação – se for isso, é a melhor das sensações.
Clarice Lispector, em seu A maçã no escuro, nos oferece uma bela imagem da liberdade. O protagonista Martim, no ponto inicial da jornada que empreenderá ao longo do romance, está sozinho em um descampado inteiramente desconhecido para ele. Está em rota de fuga depois de ter cometido um crime e pretender recomeçar sua própria vida, numa mímesis do começo radical de tudo o que existe. Pois bem, Martim está no descampado, sentado numa pedra sob o sol, e a narração do texto nos indica que ele está livre e sozinho com Deus. Leiamos:
A ilimitada liberdade o deixara vazio, cada gesto seu repercutia como palmas na distância: quando ele se coçou, esse gesto rolou diretamente para Deus. A coisa mais desapaixonadamente individual acontecia quando a pessoa tinha a liberdade.
Este trecho instigante nos diz, com absoluta simplicidade, que se pudéssemos estar completamente livres, como miticamente está Martim, tocaríamos bola diretamente com Deus. Isso quer dizer que tudo o que nos determina, ou seja, tudo que reduz nossa liberdade, se interpõe entre nós e Deus. Por outro lado, quer dizer também que uma plena relação com Deus só é possível na liberdade. Daí a importância da libertação para nos acercarmos de Deus.
A imagem das palmas repercutindo na distância evoca o poder do eco. Quando uma voz ecoa, ela retorna aos ouvidos de quem a proferiu como se viesse de uma distância infinita, e como se nada houvesse entre o emissor da voz e essa distância. O gesto de Martim rola diretamente para Deus porque nada se interpõe entre eles. Como palmas ecoando na distância, o gesto de Martim rola para Deus como a bola lançada com a precisão do craque. E podemos sugerir que a inteligência do craque é a percepção do espaço de liberdade que a bola tem ao ser lançada. É preciso que ela siga sem se desviar em nada. A bola que rola diretamente para o gol é como o gesto de Martim rolando diretamente para Deus. Nada há entre os dois porque Martim foi capaz de desfazer-se de tudo que o prendia.
Mas bem sabemos que nunca alcançamos isso nesta vida terrena cheia de cipós e zagueiros a nos desviarem do caminho. Martim é um personagem fictício que vem nos mostrar nosso desejo, mais do que nossa realidade. Mas também o desejo de Deus para nós.
A teologia da libertação insiste na função preponderante da libertação em toda a travessia bíblica. O Deus de Abraão, Jacó, Moisés e Jesus é o Deus que liberta, que incita a luta de libertação diante de todo aprisionamento ou escravização. E é também o Deus que nos deseja, que nos ama e pede de nós amor. Seguindo a bela intuição clariciana, podemos imaginar um Deus que nos quer livres porque só assim o encontraríamos diretamente. Para tocar bola com Deus é preciso que nos dispamos de tudo o que nos segura, adere, impede de enxergar no infinito. Libertar-se deve ser, portanto, um movimento que lança para a distância infinita que nos separa de Deus e de nós mesmos – pois não nos esqueçamos de que a imagem citada evoca também o eco.
Pobres de espírito, assim, seriam aqueles despidos de todo tipo de aprisionamento e, por isso, capazes de enxergar no infinito e lançar seus gestos diretamente para Deus. Numa individualidade desapaixonada, ou seja, não aderida a si mesma, uma pessoa humana se relacionaria com Deus mesmo que não soubesse disso, como era o caso de Martim que, sozinho no descampado, tendo deixado para trás toda a sua vida e sem nenhuma ideia do que viria à frente, se sentia inteiramente vazio.
Vazia de tudo o que me aprisiona, o que é verdadeiramente impossível, pois amores terrenos me prendem suavemente, eu seria capaz de conhecer a absoluta liberdade, aquela que direciona diretamente para Deus. Mas, sem a audácia de Martim, reconheço pequenos lances dessa liberdade a cada vez que me liberto de algo. Instantes mágicos que me põem em contato fugaz com o Deus que me inspira e que certamente são o que mantem em mim a convicção da liberdade, mesmo quando a razão me indica sua impossibilidade.
Marília Murta de Almeida é professora e pesquisadora no departamento de Filosofia da FAJE