Carlos Roberto Drawin
Não existe vida humana que não seja narrada. Em nosso quotidiano, quando interagimos com alguém, mesmo em ocasiões breves e formais, logo nos dispomos a partilhar alguns fragmentos de nossas vivências. Um acaso ou lembrança, sensação ou sentimento, mal-estar ou expectativa quase sempre emergem de alguma forma. “Hoje está frio”, “parece que vai chover”, “acordei com o pé esquerdo”, “o trânsito está horrível”, “a festa vai ser boa”, “tenho que correr para não chegar atrasado”. Não nos basta sentir e viver; precisamos contar. Por isso Gabriel García Márquez, o grande escritor colombiano, deu à sua autobiografia um saboroso título: “viver para contar”. Mas, por que motivo adjetivá-lo como “saboroso”? A resposta é simples: as comidas e bebidas não apenas saciam nossa fome e sede, porque temos outras fomes e outras sedes, por isso, mesmo os melhores vinhos e queijos tornam-se insípidos e frustrantes quando não os partilhamos com os outros, se os consumimos no desprezo ou abandono somos por eles consumidos no vazio da solidão. Por outro lado, o mais simples dos pratos pode nos deliciar se tiver sido temperado por um gesto amoroso. Esse é o sentido da mesa como lugar de oferenda e encontro e na qual o tilintar dos copos e talheres tornam-se brincadeiras, sorrisos e palavras. Nos fartamos, então, com o pão da amizade ao nos narrarmos uns para os outros e aí reside, no fundo, o verdadeiro sabor.
A imagem aqui sugerida é de alegria e paz. Não estaríamos com ela sucumbindo, contudo, ao mais tolo otimismo? Não estaríamos endossando mensagens de paz e alegria imaginárias como as que circulam tão abundantemente nas redes sociais num mundo tão cruel? Quem já não testemunhou, direta ou indiretamente, as brigas, amargas discussões, ressentimentos e mau-humores em refeições de família, naqueles momentos de convivência que deveriam ter sido festivos e felizes? Nesses casos, as mais refinadas iguarias podem se tornar intragáveis e, assim, por antecipação, o bom senso nos aconselha calarmo-nos acerca de assuntos melindrosos que podem colocar tudo a perder. Isso ocorre porque as palavras vêm carregadas de afetos, pois aquilo que nos afeta – os prazeres e dores do corpo e da alma – nelas se depositam e se expressam. Afinal, somos animais narrativos e somente assim suportamos à voragem do tempo e ao peso da finitude.
Narrar significa ordenar os acontecimentos e imprimir-lhes uma direção, um sentido, no empenho de traduzir o vivido em crenças mais ou menos assumidas e elaboradas. Não há quem possa jactar-se de não crer em nada a não ser encerrando-se num mutismo e numa indiferença de pedra. Desse modo, à primeira palavra dita, ainda que seja “não creio em nada”, a crença de não crer já se impõe e se autocontradiz. Somos feitos de palavras e crenças, testemunhas de nossa grandeza humana e do imenso risco de sermos humanos. Por que grandeza e risco? Porque em seu imenso poder, a linguagem transcende a nossa individualidade abrindo o espaço da comunidade e da alteridade e, ao fazê-lo, também insinua a nossa mortalidade, a fragilidade de nossas crenças e, de certa forma, o encontro com o Outro nos aliena de nós mesmos. Não é difícil compreender, então, a razão de bloquearmos o diálogo e nos sentirmos tão ameaçados pelas diferenças e pluralidades das crenças. Ameaçados, reagimos para assegurar o nosso espaço egóico: o meu partido, a minha seita, meu conhecimento, minha escolha, devem ser colocados acima de tudo e devem prevalecer sobre todos. Essa pretensão impossível de nossas crenças exaltadas somente se sustenta no medo e no ódio dirigidos aos outros sempre vistos como um potencial inimigo.
Isso significa que mergulharmos no relativismo do “tudo é igual e intercambiável” é porque, na realidade, nada vale mesmo? Esse “nada vale”, todavia, pouco tem de abdicação e modéstia, pois é o signo inconfundível do niilismo de uma sociedade que corrói todo valor substantivo porque inteiramente se entrega ao valor de troca do dinheiro. O dinheiro nada vale, não podemos comê-lo, bebê-lo, ou nos protegermos do frio e, muito menos, com ele, nos é dado o saborear da vida, mas ele também vale tudo, porque pode comprar coisas, ideias, pessoas e, até mesmo, alguns dizem, não sem um grão de ironia, compra-se facilmente o amor e a felicidade. Essa mistura do tudo e do nada nos confunde e nos lança na escuridão, nos aprisionando naquela “noite do mundo” na qual “todos os gatos são pardos”. Agora talvez possamos entender melhor o sentido de nossas crenças fechadas, defensivas e reivindicantes de prevalecer sobre todas as outras e tão sobrecarregadas de medo e de ódio: são gritos em meio à escuridão.
O que fazer? Não podemos jamais elidir essa pergunta para nos entregarmos à conformidade ou ao desespero. Há muito o que fazer, seja na paciência da escuta das diferenças e no dar as mãos na difícil construção das identidades mais profundas e abrangentes, seja na perscrutação insistente das bibliotecas e laboratórios, no garimpar as pequenas belezas dos dias e das noites, no acolher a pungência dos sofrimentos. Há sempre muito o que fazer para alimentar a esperança e saborear a vida.
Carlos Roberto Drawin é professor emérito do Departamento de Filosofia da FAJE