Pe. Jaldemir Vitório SJ
O ministério de Jesus de Nazaré foi todo permeado de conflitos com um grupo que o Evangelho de Mateus chama de “escribas e fariseus”. Tratava-se de uma ala legalista e intransigente de um movimento caracterizado pela estrita observância da Lei de Moisés, estudada com enorme empenho. Eles cuidavam de cumprir todos os mandamentos da Lei, sem omitir nenhum deles, mormente, no tocante ao repouso sabático, ao pagamento dos dízimos e à pureza ritual. Os mais radicais queriam obrigar o povo a se submeter às exigências da Lei, sem deixar escapar uma só vírgula.
Jesus, por sua vez, seguiu na direção oposta. Sua preocupação consistia em conhecer e praticar a vontade de Deus, com total independência em relação à Lei mosaica escrita. Quando se defrontava com alguém carente de cura, acolhia-o e lhe restituía a saúde, embora em dia de sábado, considerado sacratíssimo pelos líderes da religião (Mt 12,9-13). Acolhia a todos, mesmo os não judeus, e tinha compaixão deles, não se deixando levar pelos preconceitos (Mt 8,5-13). Seu trato com as mulheres e as crianças seguia na contramão dos costumes da época que marginalizava e desvalorizava essa parcela da sociedade (Mt 8,14-15; 19,13-15). O tema da pureza ritual pouco lhe interessava, por saber que a contaminação do ser humano não entra pela boca, e sim procede do seu íntimo (Mt 15,10-11).
Esse projeto de vida libertada e libertadora foi colocado em xeque por seus inimigos que lhe pediam um “sinal”, para respaldar tudo quanto fazia, contrariando as proibições religiosas (Mt 12,38; 16,4). Acusavam Jesus de agir em conluio com “Beelzebu, o príncipe dos demônios” (Mt 12,24). Apelidavam-no de “comilão, beberrão, amigo de publicanos e pecadores” (Mt 11,19). Colocavam defeito em tudo quanto fazia, por exemplo, quando permitiu aos discípulos colherem espigas em dia de sábado para matar a fome, ação proibida pela religião escrupulosa da época (Mt 12,1-5). Ou quando não dava importância à regra religiosa da pureza ritual, de modo a não se incomodar, quando os discípulos comiam sem terem lavado as mãos (Mt 15,1-9). Qualquer coisa que Jesus fizesse de bem tornava-se motivo para ser criticado pelos legalistas da época. No entanto, jamais arredou um só milímetro do caminho apontado pelo Pai! (Lc 4,30).
O foco de sua pregação era a misericórdia. Citando duas vezes o profeta Oseias (Os 6,6), Jesus declarou: “quero misericórdia e não sacrifício” (Mt 9,13; 12,7). A religião da Lei ocupava um lugar secundário, pois a misericórdia se tornava um imperativo. A salvação seria decorrência da misericórdia praticada, no trato com os irmãos e as irmãs mais necessitados; enquanto a condenação resultaria do fechamento egoísta do coração, em face das carências alheias. “Tive fome e me destes de comer… Vinde, benditos do meu Pai. Tive fome e não me destes de comer. Apartai-vos de mim, malditos…” (Mt 25,31-46). A salvação não passava, necessariamente, pela observância fanática da Lei!
Jesus chamou os adversários de “geração má e perversa” (Mt 12,39; 16,4). O Evangelho comporta uma série de “ais”, contra os “escribas e fariseus hipócritas”, bonitos na aparência religiosa, no entanto, internamente corrompidos (Mt 23,13-31). Seu modo de proceder, em nada, se sintonizava com o querer do Pai dos Céus, ignorado no quotidiano, apesar de se apresentarem como fiéis ao que prescrevia a Lei mosaica (Mc 7,8-13). Essa gente inescrupulosa chegou ao auge de tomar a decisão de eliminar Jesus (Mt 12,14), coisa que, afinal, conseguiram ao vê-lo pregado na cruz.
Essa reflexão evangélica vem-me à mente, quando percebo crescer na Igreja Católica um tipo de gente que se considera “católicos de verdade”, defensores da tradição, da liturgia e das rubricas, preocupadíssimos com os dogmas e as doutrinas que aprenderam das avós. No entanto, estão pouco ou nada interessados em pautar suas vidas pelo Evangelho. Antes, sentem-se no direito de julgar tudo e todos que não se encaixam em seus esquemas mesquinhos, às vezes, servindo-se de informações falsas ou deturpadas, de leituras enviesadas ou manipulada da tradição católica, da supervalorização de afirmações de certos santos e santas, às vezes, de tempos longínquos, prescindindo do contexto em que foram feitas e de seu sentido original. Tudo isso e muito mais sem qualquer escrúpulo ou peso na consciência. Comportam-se como juízes da humanidade!
Os meios de comunicação e as mídias digitais são usadas por eles, com grande competência, para disseminar inverdades e incutir na cabeça de católicos incautos suas maquinações descomprometidas com o Evangelho e com o Reino de Deus. Choca-me, sobretudo, a maneira leviana, quando não bestial, como tratam o Papa Francisco, reduzindo-o a um “zé mané” irrelevante, embora tenha sido eleito pelo colégio de cardeais, num conclave onde todos tinham o direito de escolher segundo suas consciências, com total liberdade. Quanto me consta, seguiu-se a tradição católica da escolha dos papas, sem qualquer intercorrência que pudesse ter levado Francisco à condição de Papa, à revelia dos cardeais eleitores. Quiçá os ultraconservadores católicos viram se frustrarem suas expectativas, já na primeira aparição de Francisco! Ou, então, teriam preferido um Papa marionete nas mãos dos senhores da Cúria Romana, sem espírito profético. Ou que optasse pela mesmice e a repetição de esquemas anacrônicos, que põem a Igreja Católica em guerra contra o mundo, do qual tem a missão de ser “sal”, “luz” e “fermento”.
Que pena a mente da extrema direita católica intolerante ser tão estreita, a ponto de impedi-la de se conectar com os pensamentos de Deus, nos passos de Jesus de Nazaré, e movê-la a um fechamento que a matará por asfixia espiritual e teológica. Pensemos nos autodesignados sedevacantistas, que se recusam a reconhecer o Papa Francisco como legítimo, considerando vacante a Sé de Pedro, desde a renúncia do Papa Bento XVI, em 2013. Existe algo de tremendamente equivocado nessa postura de quem pretende defender a tradição. Que tradição? É lastimável ver os ditos conservadores católicos se tornarem dignos das palavras duras de Jesus: “geração má e perversa!” O que aconteceria com o Mestre de Nazaré se caísse nas mãos deles? Com certeza, estariam lá para gritar: “Crucifica-o! Crucifica-o!”
Quem se preocupa em ser, realmente, discípulo e discípula de Jesus de Nazaré deve tomar cuidado com a falsa pregação dessa gente. Afinal, repetem as atitudes condenáveis dos legalistas e moralistas de outrora, cuja intolerância levou o Mestre à morte de cruz. Urge-se atenção redobrada, quando se apresentam como defensores da “verdadeira Igreja, da verdadeira tradição, da sã doutrina”. E se sentem no direito de se comportarem como árbitros de tudo e de todos, a começar pelo Papa Francisco, desprovidos da autocrítica recomendada no Evangelho (Mt 7,1-5). São os falsos profetas denunciados por Jesus que se apresentam “disfarçados em ovelhas, mas por dentro são lobos ferozes” (Mt 7,15). Jesus declara: “pelos seus frutos os conhecereis” (Mt 7,16). E seus frutos antievangélicos são bem conhecidos: discursos de ódio e de intolerância, apego a um passado que não faz mais sentido, leitura fundamentalista da tradição bíblica, valorização de picuinhas em detrimento do que é essencial (Mt 23,23), insistência em atitudes sectárias e de divisão, ruptura da fraternidade, divulgação de calúnias e difamações, além de acusações infundadas e tantos outros. Não se espere desta gente: fraternidade, benevolência, diálogo, perdão, reconciliação, cuidado com o empobrecidos e marginalizados, luta contra a injustiça, muito menos, preocupação com as pautas socioambientais; enfim, com os frutos do Espírito, elencados em Gl 5,22-23.
Verdadeiro católico é quem abraça o Evangelho do Reino e, como Jesus de Nazaré, busca em tudo e sempre ser fiel ao querer do Pai dos Céus, cuja vontade se esforça por praticar (Mt 6,10). Atenção às palavras cheias de unção, desconectadas do Evangelho, para não se deixar enganar pelos malvados e perversos, defensores de um tradicionalismo ultrapassado, à revelia de nosso Mestre e Senhor: Jesus Cristo!
Jaldemir Vitório, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE