Luiz Sureki, SJ
Muitas vezes falamos de religião e dizemos que uma pessoa é muito religiosa ou que é pouco religiosa, que pertence a esta ou àquela religião, ou ainda que não pertence a religião alguma, e, por conseguinte, que não crê em Deus. Comumente, a religião é tomada como algo que as pessoas têm, e que, por isso, também poderiam não ter, deixar de ter ou simplesmente trocar por uma outra supostamente melhor.
Desde essa perspectiva, ter uma religião não parece diferenciar-se muito de ter alguma filiação política, pertencer a algum partido ou ser sócio de um clube. A religião aparece nesses casos como algo “externo” ao ser humano, algo que ele em algum momento entra, adquire, agrega ou acrescenta à sua vida por distintas motivações, dentre as quais as mais comuns provêm de relações de família, de parentesco, de etnia, de manutenção da identidade coletiva, social, cultural. As pessoas sobremodo confundem religião com instituição e/ou com denominação religiosa.
Dentre os variados significados que a palavra latina religio (religião) recebeu [relegere = reler; religare = religar; reeligere = reeleger], gostaria de destacar um que remonta a uma experiência do campo, a saber, a “ação de ligar”, de atar com ligas (ataduras), de ser suporte. Como ação de atar, ligar a, religio significava na agricultura o pôr ou fincar estacas junto a ou em torno de uma planta para que ela crescesse reta, não ficasse retorcida, não se inclinasse ou viesse a cair no solo, mas sim que verticalmente crescesse para o alto, buscando a luz do sol. Assim como a planta naturalmente busca a luz do sol, o ser humano busca sentido, luz, orientação para a existência. Nessa busca, o ser humano se ata àquilo que acredita que lhe ajudará a crescer orientado para o “alto”, para a “luz”. Esse para-onde luminoso é chamado de divino. Divino remonta ao protoindo-europeu diw ou deiwos que significa brilhante, celeste, luminoso. Do mesmo radical diw (div) se origina nossa palavra dia, assim como a palavra Deus.
Nesse sentido, pode ser proveitoso distinguirmos entre divindade e Deus. Isso porque nem toda religião se autocompreende desde um único Deus (monoteísmo), mas, grande parte delas, ao seu modo e à sua maneira, fala de divindades, que como tais só se compreendem desde a noção de divindade. Essa distinção já era conhecida no cristianismo medieval e é expressa com claridade, por exemplo, por Mestre Eckhart. A divindade representa o aspecto interior e passivo do mistério divino, enquanto Deus constitui o aspecto externo e ativo do mesmo mistério.
Desse modo, a divindade não designa somente Deus e os deuses/deusas como seres substanciais, também o termo pode ser empregado como nome genérico que indica todas aquelas forças, energias, entidades, potências que provêm de uma realidade “além” do mundo humano. A esfera do divino representa aquele elemento da realidade que não pertence ou não se confunde com o mundo material (físico), nem com o mundo puramente humano. O divino indica, assim, uma das três dimensões constitutivas da realidade como um todo.
Segundo Raimon Panikkar, as três dimensões constitutivas da realidade são a divina, a cósmica e a humana. Na medida em que elas são constitutivas da realidade, elas só podem ser separadas uma da outra de modo conceitual/abstrato, não de modo real; afinal não são três realidades, mas três dimensões de uma só realidade total. Desde aí se segue que o para-onde definitivo que a religião conduz não pode estar “fora” da realidade (como uma segunda realidade = dualismo), nem se confundir com o todo da realidade (monismo-
panteísmo), nem ser simplesmente um ente entre outros entes da realidade! O polo divino da realidade não ocupa um determinado lugar no espaço nem uma determinada data no tempo. Ele é espiritual, e, por isso, radicalmente relacional.
Podemos, então, pensar a religião como “o ser humano no mundo a caminho ou em busca da luz”. Note-se que luz aqui se refere à dimensão última ou escatológica da mensagem religiosa. Assim como não é a estaca o fim último da planta, mas sim seu pleno crescimento e frutificação, também não é a religião o fim último do homem, mas antes a sua plena realização, iluminação ou divinização. A religião é o caminho que promete conduzir o homem à sua finalidade. Essa finalidade, acima referida como a luz, iluminação, divinização, recebe nas religiões outros vários nomes, tais como salvação, vida eterna, plenitude, felicidade, paraíso, céu, Reino de Deus, entre outros.
A religião (re)liga, conecta, relaciona e expressa os três polos da realidade. O polo humano está conectado com o polo cósmico (somos pó da terra) e com o polo divino (também somos espírito, viventes). Há algo do cosmos e do divino no homem. Por isso, muitas das imagens que expressam o definitivo do homem assumem contornos espaciotemporais, como a do paraíso, por exemplo.
A mensagem das religiões, enquanto discurso, doutrina, ensinamento, pregação, consiste fundamentalmente em apresentar ao homem que está buscando a iluminação, a divinização, a salvação, o caminho que ele deve seguir. “Caminhar” é verbo de ação. Não basta imaginar um caminho, não basta conhecer intelectualmente os mandamentos, os dogmas, as normas, os preceitos; é preciso colocá-los em prática na vida. Isso porque a noção de plenitude, salvação etc., engloba o homem todo, não apenas uma de suas dimensões.
Para ser bem compreendida, a palavra da mensagem religiosa precisa ser escutada e praticada. Quando a palavra ouvida (anúncio) fica separada da ação (prática), quando o que se diz ou que se prega não é o que se vive, a mensagem religiosa se perde. Com efeito, o Evangelho não é fácil de entender quando não é posto em prática. Em contrapartida, quando colocado em prática, até os pequeninos (não sábios e inteligentes) o entendem perfeitamente (cf. Mt 11,25).
No caso peculiar do cristianismo, o Evangelho, a Boa Notícia, a Palavra da Salvação é, antes de tudo, Alguém a ser ouvido e seguido. Palavra e Caminho constituem, Nele, uma unidade. O cristianismo é a religião da Palavra; os primeiros cristãos, seguidores de Jesus Cristo, foram chamados “adeptos do Caminho” (At 9, 2). O conteúdo da Boa Notícia salvífica não é um livro, nem é extraída desde a leitura de um livro! Na Liturgia da Palavra, quando se proclama o Evangelho se diz: “Evangelho de Jesus Cristo” segundo Mateus, Marcos, Lucas ou João. Note-se que Evangelho de Jesus Cristo precisa ser compreendido em sentido forte, como genitivo subjetivo, ou seja, Jesus Cristo é o próprio Evangelho, apresentado, agora sim, segundo algum dos quatro evangelistas. É claro, portanto, que o Evangelho não é João, não é a vida de João, mas é Jesus Cristo, a vida de Jesus Cristo segundo João. É bom lembrarmos que Jesus Cristo nada escreveu! A esse respeito diz Santo Tomás que foi conveniente que Jesus nada escrevesse, pois, do contrário, sua mensagem vivificante se converteria em mera doutrina (cf. STh III, q. 42, u.4). De fato, pode-se bem imaginar o que teria acontecido se Jesus Cristo tivesse deixado algum escrito! Em pouco tempo, o tal escrito substituiria o próprio autor e Salvador, e o acesso à letra, à escrita, ao texto propriamente dito, passaria a ser a condição fundamental para a salvação! A letra suplantaria o Espírito. É assim que muita gente ainda pensa com relação à Bíblia!
O apóstolo Paulo recolheu essa lição com maestria na sua segunda epístola aos Coríntios, ao escrever: “vós sois uma carta de Cristo …, escrita não com tinta, mas com o Espírito
do Deus vivo; não em tábuas de pedra, mas em tábuas de corações humanos. […] Deus nos tornou capazes de exercer o ministério da aliança nova, não da letra, mas do Espírito. Com efeito, a letra mata, mas o Espírito faz viver” (2Cor 3, 4. 6). O Espírito divino, como a Vida de Deus que estava na (sua) Palavra encarnada, e que nos foi dado mediante a escuta da Palavra posta em prática (o seguimento de Jesus), que nos torna filhos e filhas de Deus, nem todos os livros do mundo poderia conter – como diz o próprio evangelista João (Jo 21, 25)!
Neste mês de setembro em que nas celebrações católicas tanto se fala da Bíblia como palavra de Deus, quisera chamar nossa atenção para o fato de que a Palavra de Deus, que no princípio estava com Deus, e que era Deus, e pela qual tudo foi criado (cf. Jo 1,1.3), a Palavra em que estava a vida, e nela a luz que os homens buscavam (cf. Jo 1,4), o Caminho dos cristãos para a Luz, para a Ressurreição, não é um livro, mas a pessoa do Cristo Jesus. Ele, como Palavra de Deus, é, por excelência, a chave hermenêutica de toda a Bíblia.
Luiz Sureki, SJ é professor e pesquisador no departamento de Filosofia da FAJE