Marília Murta de Almeida
Inspirada pela turma de Antropologia Filosófica,
especialmente pelo Luciano Sabedot
A teologia cristã nos impõe a tarefa de pensar a relação do corpo com Deus, já que afirma a fé num Deus que se fez carne e habitou entre nós, como nos diz o Prólogo do Evangelho de João. Se Deus é o invisível desconhecido de quem nada podemos afirmar com a luz da razão, como entender que possa habitar entre nós em um corpo como o nosso? E em que essa ideia afeta nossa própria corporalidade?
Sobre isso muita teologia e muita filosofia já foram escritas. Muito também já se evitou pensar e falar, num movimento de recusa e repulsa diante de ideia que parece tão impossível de ser absorvida. Santo Agostinho, autor de obra controversa e até acusado de responsável pela histórica rejeição do corpo pelo cristianismo por causa da ideia de pecado original, escreveu, entretanto, linhas belíssimas e instigantes para pensarmos a relação entre Deus e nosso corpo. Logo após escrever sobre seu encontro tardio com Deus, acrescenta:
“Porém chamastes-me com uma voz tão forte que rompestes a minha surdez! Brilhastes, cintilastes e logo afugentastes a minha cegueira! Exalastes perfume: respirei-o, suspirando por Vós. Saboreei-Vos, e agora tenho fome e sede de Vós. Tocastes-me e ardi no desejo da vossa paz.”
Como entender este apelo aos sentidos que o nosso autor faz ao referir-se à sua percepção da presença de Deus em seu interior? Tomar as imagens como metáforas e recursos poéticos que nos permitem talvez acessar algo indizível é uma saída legítima, mas não inteiramente convincente. O texto tem força suficiente para nos lançar na hipótese de que os sentidos possam de fato ser despertos pela presença de Deus no âmago de nosso ser.
Tal seria a experiência de muitos místicos que descrevem no corpo o encontro com Deus. O Deus que habita nossa interioridade parece ter o poder de despertar nossos sentidos. Seguindo tal hipótese, podemos também entender a ideia de sensibilidade espiritual em sentido não apenas metafórico. Os sentidos espirituais seriam as portas internas de nossos sentidos: o Deus toca nossos sentidos a partir de dentro, assim como as coisas do mundo os tocam a partir de fora.
A literalidade desta ideia seria o fato de que os sentidos de fato ficam despertos, assim como a fruição do prazer ou da dor na experiência espiritual. O corpo sente a presença que nos habita. Mas ter os sentidos despertos não quer dizer exatamente que Deus tenha um cheiro, um timbre de voz ou barbas brancas que possamos tocar; quer antes dizer que o efeito que sentimos no corpo é tal como se tivéssemos sentido um cheiro, ouvido uma voz ou tocado longas barbas.
Para entrarmos ainda mais nessa hipótese, leiamos o poema “Encarnação”, de Adélia Prado”:
“Sem quebrantar-me,
forte doçura até os ossos me toma.
Não há estridência em mim.
Fibrila o que mais próximo
posso chamar silêncio,
ainda assim palavra,
uma interjeição,
o murmúrio adivinhado
de um rio subterrâneo
no útero da mãe quando ela estava feliz
e o meu sangue era o dela
e sua respiração
a minha própria vida.
Quando o espírito vem
é no corpo
que sua língua de fogo quer repouso.”
O rio subterrâneo de silêncio e palavra nos habita e nos embebe de doçura. Toca por dentro nosso corpo, transmuta-nos a partir da interioridade. Este rio é o espírito mesmo que repousa em nós. A língua de fogo que queima sem sossego, descansa em nós. Ao fazê-lo, desperta nosso corpo, nos sensibiliza.
O corpo, todo feito de poros de sensibilidade, abre-se para fora e para dentro do mesmo modo. O mundo e Deus nos assaltam com sua presença. O espírito, como o filho no corpo da mãe, habita nosso corpo de carne. E se faz carne por meio da nossa carne, respirando conosco, comendo conosco, gemendo conosco. Sentimos pelos sentidos a sua presença e, ao mesmo tempo, sentimos o mundo juntamente com o espírito que se tornou também a nossa carne.
Assim, lidar com a noção de encarnação implica em um duplo processo de espiritualização do corpo e corporificação do espírito. Não há duas instâncias que se juntam, há apenas uma instância, que é a do verbo feito carne. Na experiência humana, a sensibilidade parece ser a dimensão em que essa transmutação se presentifica mais perfeitamente. Ser tocado pela sensibilidade é o estado que descreve a pessoa que experimenta um encontro, seja na exterioridade do mundo ou na interioridade espiritual.
Por isso é a sensibilidade em nós que, afetada, nos comunica a presença do Deus encarnado.
Marília Murta de Almeida é professora no departamento de Filosofia da FAJE