Washington Paranhos, SJ
Para falar da Vigília Pascal devemos, antes de mais nada, referir-nos ao dado teológico (o Mistério Pascal) e ao seu contexto celebrativo (o Tríduo do Senhor Crucificado, Sepultado e Ressuscitado). Comecemos pela lex credendi: a unidade do mistério pascal atestada nas páginas neotestamentárias, na literatura cristã dos primeiros séculos e na reflexão teológica.
“E se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa pregação, e a nossa fé” (1Cor 15,14). Essa declaração do apóstolo Paulo é certamente uma das mais claras e, ao mesmo tempo, mais radicais de todo o Novo Testamento. É uma afirmação que dispensa explicação e não admite indiferença. No mistério pascal deparamo-nos não só com a verdade mais importante, mas com o próprio fundamento da fé cristã. Sem a ressurreição de Cristo, a fé cristã não é privada de alguma coisa, mas é esvaziada, não há mais nada, não há nenhum sentido, mas não como um recipiente vazio, mas como um corpo sem vida. Se não há ressurreição de Cristo, não há possibilidade de cristianismo. Não é por acaso que na profissão de fé, antes de confessar “creio na ressurreição da carne”, se diz “creio em Jesus Cristo que foi crucificado, morto e sepultado; desceu à mansão dos mortos; ressuscitou ao terceiro dia”. Os cristãos acreditam que os mortos ressuscitarão porque acreditam que Jesus ressuscitou dos mortos e não o contrário.
Considerando a afirmação do Apóstolo nas suas implicações, poder-se-ia dizer: “Sem o mistério pascal a vossa liturgia é vazia”. Se, de fato, a ressurreição de Cristo é o fundamento da fé, é necessariamente também o fundamento da liturgia cristã, que não é outra coisa que a celebração do mistério pascal. Sempre é, mas especialmente na festa anual da Páscoa.
Não basta a nós, cristãos, crer e confessar na fé que Cristo morreu e ressuscitou, mas todos os anos, na festa da Páscoa, celebramos o mistério em que cremos. A Páscoa de Cristo, em outras palavras, não é para nós um mero objeto de conhecimento adquirido de uma vez por todas. Não é um simples conhecimento, uma noção. Mas também este ano, provavelmente pela enésima vez em nossa existência, celebraremos a Páscoa de Cristo. Celebrar significa simplesmente que nos dias do Tríduo Pascal nos encontraremos na mesma hora, no mesmo lugar para formar uma assembleia litúrgica. Ali ouviremos a leitura de passagens das Sagradas Escrituras do Antigo e Novo Testamento, faremos orações, cantaremos cânticos, mergulharemos nos gestos e sinais.
Para realizar tudo isso, habitaremos um espaço santo, o espaço litúrgico, onde seremos chamados a ver imagens e a venerar algumas delas, especialmente a cruz. Ouviremos sons, tocaremos realidades materiais com as mãos, cheiraremos perfumes e aromas, provaremos o que nos será dado como alimento: pão e vinho. Nós, cristãos, portanto, celebramos a Páscoa do Senhor e, celebrando-a, fazemos memória, participamos dela. E, ao mesmo tempo, fazemos memória dela celebrando-a. Mas por que celebrá-la, não basta saber que Cristo morreu e ressuscitou? Por que repetir os ritos todos os anos, os ritos da Páscoa?
O Triduum Paschale
O Tríduo Pascal é uma verdadeira ressignificação da nossa experiência humana cristã, mas imersa na compreensão divina e compreende três dias: Sexta da Paixão, Sábado da Sepultura e Domingo da Ressurreição do Senhor.
A compreensão e vivência do Tríduo Pascal transforma a nossa perversa humanidade. Como o Papa Francisco afirma: “não somos responsáveis pela nossa salvação; ela é gratuidade e dom de Deus”. Na celebração do Tríduo Pascal, somos chamados a entrar nessa imensa gratuidade de Deus em Jesus, que mergulha na nossa humanidade e se humaniza para nós nos divinizarmos. Inclusive, podemos pensar que o contrário do humano não é o divino, mas o contrário do humano é a perversidade, o desumano. O divino vai coincidir com o humano quando trilharmos o caminho de Jesus e o jeito que Ele viveu como humano. O Tríduo nos coloca nessa esperança de nos transformarmos, a partir de nós, e assim, transformarmos o mundo que ainda está sob o jugo do mal. A nossa missão hoje, como cristãos, é a humanização do humano.
A unidade teológica do acontecimento pascal exprime-se claramente no acontecimento celebrativo; com efeito, o Tríduo Pascal, tomado no seu conjunto, recorda o mistério da morte e ressurreição de Cristo, na sua unidade e nas suas fases sucessivas. Embora do ponto de vista da temporalidade celebremos e marquemos ao longo do tempo os dias santos, do ponto de vista teológico e litúrgico eles são continuamente lembrados: o Tríduo é a própria realidade da Páscoa celebrada sacramentalmente em três dias.
O ponto alto do ano litúrgico é a Vigília, uma noite batismal em que novos membros são acolhidos pela e na Igreja, mas nós também renovamos o nosso batismo. Contudo, nos outros dias, celebram-se os aspectos desse mesmo mistério. A sexta-feira com ênfase na morte, o sábado, na sepultura, e o domingo, por sua vez, na ressurreição.
O primeiro dia do Tríduo é a Sexta-feira Santa, ou a Páscoa da cruz, como preferiam chamar os Padres da Igreja. Esse dia expressa tristeza e luto pela condenação e morte de Jesus. Mas, a Quinta-feira expressa-se como um momento e não como um dia do Tríduo. Já nas origens, a celebração da quinta-feira assumia um caráter de primeiras vésperas, uma espécie de abertura do Tríduo. De início, era muito simples, mas, com o passar do tempo, foi ganhando peso. Agora é celebrada em tom festivo: com flores, velas, antífona de entrada, o canto do glória, a cor litúrgica é o branco. Repete-se nesta noite, no plano simbólico, aquilo que depois será realizado na cruz: na ceia, Jesus, simbólica e existencialmente, se entrega. Nesse dia, renovamos ainda a consciência que o Concílio nos devolveu, de que a missa é Ceia.
A Sexta-feira da Paixão evidencia a verdadeira natureza do mundo, que escolheu e continua a preferir as trevas à luz, o pecado ao bem, a morte à vida. Ao condenar Jesus à morte, o mundo condenou a si mesmo à morte. Não cabe fazermos um moralismo pequeno. Precisamos pensar no grande mal do mundo. A Sexta-feira Santa denuncia o mal presente na humanidade. Mas, ao mesmo tempo, a Sexta-feira Santa apresenta uma dimensão de ação de graças pela fidelidade do Filho ao Pai até a doação total da sua vida. É por amor a nós que Jesus aceita morrer. Sua morte é a revelação suprema de sua compaixão e de seu amor. A condenação de Jesus se transforma em perdão.
Em perspectiva bíblica, a Sexta-feira da Paixão, sobretudo no Evangelho de João, é “Paixão gloriosa”, celebração do Amor Maior, madrugada de Ressurreição. Fazendo memória da bem-aventurada Paixão do Senhor, a Igreja celebra o seu próprio nascimento ao lado de Cristo na cruz.
O segundo dia do Tríduo é o Sábado Santo, que mesmo depois da reforma, permanece como um dia meio “apagado” na celebração do Tríduo Pascal. Às vezes, reduzido a um dia de limpar a Igreja, no entanto, Cristo morreu, foi sepultado e ressuscitou. Por isso, faz parte do mistério de Jesus a Kénosis do Sábado Santo, o dia do repouso. O próprio Deus descansou no sétimo dia, na primeira criação. Também Jesus repousa do seu cansaço e trabalho no sétimo dia, para gerar uma nova criação no primeiro dia depois do sábado. Por isso, o foco deste dia é a sepultura do Senhor, a certificação de sua morte e que pertence à forma mais antiga da fé, o Credo da Igreja: “Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras” (1Cor 15,3-4).
O “grande e santo Sabbat” é o dia que liga a Sexta-feira Santa à comemoração da cruz, ao dia da ressurreição. Para muitos, a verdadeira natureza e o sentido dessa ligação, a necessidade real deste dia intermediário, permanece obscura. “O grande Sábado é precisamente este dia de transformação, o dia em que a vitória germina de dentro mesmo da derrota, uma vez que antes da ressurreição nos é dado contemplar a morte da própria morte” (Alexandre Schemémann). O sepultamento é por demais doloroso e não se pode negar este lugar; ele precisa ser assumido. Jesus entrou nesse lugar do cumprimento da nossa finitude humana e transformou o significado da nossa vida.
O terceiro dia é o Domingo da Ressurreição. A Vigília vem celebrada na missa vespertina, em conexão com o dia seguinte. A Vigília Pascal é o eixo estruturador do ser cristão: a noite em que são admitidos novos membros mediante a iniciação cristã através do batismo, da crisma e da eucaristia. A referência inicial da Vigília é o Êxodo, este grande acontecimento na trajetória do povo hebreu, passando de não povo a Povo de Deus.
A noite vai sendo iluminada. Acende-se a fogueira, o Círio, e a escuridão começa a abrir espaço para a luz. Ao realizarmos este gesto, vai acontecendo um movimento interno em nós: o diálogo com a nossa própria realidade de escuridão; abrindo espaço, no nosso coração, para que a luz que está clareando a noite clareie também a escuridão que nos habita. Assim, rezamos em comunhão por e com tantos que precisam desta luz verdadeira.
O segundo momento do rito da Vigília Pascal é a liturgia da Palavra. Nenhuma liturgia da Igreja conta com uma liturgia tão grande quanto a da Vigília Pascal: são oito leituras e mais o Evangelho, isto é, um longo relato da história de Deus com seu povo. Antes das leituras é feita uma introdução muito bonita, que encontramos no Missal Romano: “Tendo iniciado solenemente esta vigília, ouçamos, no recolhimento desta noite, a Palavra de Deus. Vejamos como ele salvou outrora o seu povo e, nestes últimos tempos, enviou o seu Filho como Redentor. Peçamos que o nosso Deus leve à plenitude a salvação inaugurada na Páscoa”.
Podemos afirmar também que a Vigília Pascal é uma vigília batismal porque tem íntima relação com o batismo. Quando somos batizados, recebemos uma luz. No início da Igreja, inclusive, o batismo era chamado de sacramento da iluminação; era a iluminação da pessoa. O elemento da vela, esta coluna de fogo, traz, para nós, a significação do nosso batismo. Estamos ressignificando o batismo nesta noite, estamos reacendendo a vela do nosso batismo neste primeiro rito.
A liturgia eucarística é o quarto momento da celebração, o ponto alto da Vigília; é este novo maná que alimentava o povo de Deus pelo deserto e é também o nosso alimento. A eucaristia desta noite é a ação de graças mais alta que a Igreja dá ao Pai pelo mistério pascal de Jesus. A eucaristia da noite pascal se reveste de uma importância maior porque é nesta eucaristia que os novos membros estão sendo integrados na Igreja pela participação da Ceia do Senhor e porque nós, que já fomos batizados há mais tempo, entramos nesta eucaristia de modo mais profundo, retomando todo o sentido da eucaristia em nossa vida. Nos tornarmos aquele que recebemos.
Cristo ressuscitou: tudo e todos devem refletir a sua luz. Não a morte, mas a vida; não as divisões, mas a paz; não ao egoísmo, mas a caridade; não a mentira, mas a verdade; não ao que deprime, mas o triunfo da luz, da pureza, do respeito mútuo.
Washington Paranhos, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE