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O dom da alegria: a glória do crucificado

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Geraldo Luiz De Mori, SJ

“Aqui pedirei graça para me alegrar e gozar intensamente por tanta glória e gozo de Cristo nosso Senhor” (EE 221).

 

Um dos hinos mais antigos da liturgia cristã é o que se encontra no capítulo 2 da carta de Paulo aos Filipenses, que resume o querigma (=anúncio) cristão primitivo, articulado ao redor da memória do caminho de Jesus, que “sendo imagem de Deus”, não se apegou a isso, mas esvaziou-se e tomou a imagem do servo, sendo humano humilhou-se, tornando-se obediente até a morte e morte de Cruz, e da afirmação de que Deus o agraciou com um “nome acima de todo nome”, de modo que, diante desse nome todo joelho se dobre, no céu, na terra e no inferno e que toda língua reconheça, para a glória de Deus Pai, que Jesus Cristo é Senhor (Fl 2,6-11). A oposição entre o esvaziar-se e o humilhar-se, e o ser exaltado, celebrada de modo solene nas cerimônias do Tríduo Pascal, remete ao mistério central do cristianismo, com implicações “teo”-“lógicas”, “cristo”-“lógicas”, “antro”-“pológicas”, eclesiais e espirituais. O que a liturgia celebra a cada ano, e é recordado em cada celebração do “Dia do Senhor”, apesar de resumir a articulação entre “lex orandi” (a Igreja que reza) e “lex credendi” (a Igreja que crê), nem sempre se transforma em “lex agendi” (a Igreja que age), ou seja, nem sempre de fato transforma o modo de ser e de agir de quem a celebra. Um dos efeitos do anúncio feito em cada vigília pascal deveria ser o que Santo Inácio de Loyola, no terceiro “preâmbulo” do início da quarta semana dos Exercícios Espirituais, propõe como graça a ser pedida: a da alegria e do gozo. Essa alegria profunda, deveria marcar os fiéis não só no momento litúrgico, mas no cotidiano, ou seja, deveria ser algo que penetra as entranhas, que move a vida, transformando-a radicalmente, modificando o modo de ver o mundo e nele agir.

Joseph Moingt, teólogo jesuíta francês que escreveu no início da década de 1990 uma obra de cristologia que tinha como título O homem que vinha de Deus, começa sua reflexão com um prólogo que tem como título “O rumor de Jesus”. É interessante o modo como ele apresenta o efeito da ressurreição, recorrendo à categoria do “rumor”, que é uma espécie de burburinho, que vai passando de um a outro, contagiando toda a região da Palestina do início da era comum, espalhando-se depois entre comunidades judias da diáspora e depois entre pagãos, fazendo com que a vida de muitas pessoas fosse totalmente transformada pela fé no que é anunciado pelo querigma cristão. É interessante que ele não só associa o rumor à difusão do cristianismo nos primeiros séculos, mas também à reflexão que a partir desse rumor foi transformando modos de pensar e ver o mundo, as relações humanas e a própria visão de Deus, compreendido como comunhão entre Pai, Filho e Espírito Santo. Uma verdadeira “revolução” acontece, levando às sínteses fabulosas dos concílios dedicados a elucidarem o conceito de Deus, a identidade e a função do Cristo, a ação do Espírito, a vida eclesial, sua liturgia, o modo como os fiéis experimentam a presença divina em suas vidas e como pensam seu agir.

Apesar dessa grande “revolução” provocada pelo “rumor de Jesus”, alguns historiadores observam que no decorrer do primeiro milênio a ênfase na compreensão da cristologia foi dada à vitória do Cristo sobre a morte, que, sob muitos pontos de vista definiam sua identidade. Isso é perceptível na iconografia desse período que praticamente não conhece representações da paixão de Jesus. No segundo milênio, porém, o interesse pela vida de Jesus torna-se central. Um deslocamento para aspectos importantes de sua vida, como seu nascimento, alguns episódios ligados à sua pregação e, sobretudo, a ênfase em sua paixão, com a irrupção, inclusive, de uma mística centrada no mistério da paixão. Essa perspectiva é importante, pois remete ao primeiro momento do anúncio do querigma, tão bem retratado no hino paulino da carta aos filipenses, ou seja, um Ressuscitado que não reenvie ao crucificado não corresponde ao conteúdo central do anúncio cristão, como bem afirma João, que diz que é preciso afirmar que ele veio na “água e no sangue” (1Jo 5,6). A força e a novidade cristã se encontram justamente nesta articulação trazida pelo Apóstolo entre o Crucificado e o Ressuscitado.

Nesse sentido, celebrar os mistérios pascais na liturgia (lex orandi) é deixar-se surpreender pelo caminho de “esvaziamento” do Filho, mas, mais que isso, é buscar penetrar o que está por detrás desse esvaziamento, a saber, um amor que se faz obediente até a morte e morte de cruz. Muitas pessoas podem se perguntar, mas a humilhação da cruz não humaniza, pelo contrário, avilta a condição humana, como se pode ver na “paixão do mundo” sofrida por tantos homens e mulheres no passado e no presente. O que humaniza, e aí está a “revolução” da cruz, é o que está em sua origem. Jesus “se entrega”, ou seja, sua morte é um colocar-se no lugar dos últimos e humilhados de todo tipo, inocentes e culpados. Certamente ele é “inocente”, mas ao “descer” e humilhar-se até à condição dos “malditos” de seu tempo, ele mostra que é uma morte “dada” “por” é o que humaniza. Nesse sentido, a Igreja explorou e descobriu ao longo dos séculos muitos elementos “salvíficos” nessa morte humilhante. E seus discípulos e discípulas, que celebram esse mistério na liturgia, devem deixar que ele se torne de fato aquilo que creem (lex credendi) e aquilo que buscam viver em seu cotidiano (lex agendi).

Mas o mistério da humilhação é tornado luminoso, ou seja, passa a ser o lugar da manifestação da glória do Crucificado. Nesse sentido, celebrar a glória de Jesus é alegrar-se com ele, mas também alegrar-se porque quem crê nele já vai encontrando no dia a dia motivos para “atravessar” os “vales tenebrosos” da morte e da humilhação, pois está seguro de que o Deus que ressuscitou seu Filho também dará vida aos “nossos corpos mortais” (Rm 8,1). É interessante como essa convicção se inscreveu nos textos do Novo Testamento, como no evangelho de João, por exemplo, para o qual “quando o Filho do homem for levantado” atrairá todos a ele (Jo 12,32). Toda a construção de seu evangelho pode ser vista como uma retomada do hino aos Filipenses, pois começa falando da “descida” do Verbo que se fez carne (Jo 1,14), identificando a cruz como lugar da máxima expressão da glória do Filho, ou seja, a glória do Filho é a sua entrega por amor. Na cruz se encontra todo o paradoxo e o todo mistério do Crucificado-Ressuscitado.

Num mundo marcado por tantas cruzes, como a das guerras na Ucrânia e na Palestina, e tantas outras “guerras por pedaços”, mas também por tantas formas de humilhação da condição humana, celebrar a Páscoa é não ignorar o que é revelado por todas essas cruzes, mas descobrir na cruz de Jesus a denúncia às atitudes de indiferença e de falta de solidariedade, para, como propõe Jon Sobrino, retomando Ignacio Ellacuría, retirar da cruz os crucificados. Mas, além de celebrar a dor e o sofrimento das cruzes do mundo, é importante também descobrir a força que brota da ressurreição, para que ela possa continuar alimentando quem crê no mistério pascal e busca pautar sua vida à luz dos mistérios em que crê, que busca celebrar e que deve continuamente inspirar a vida, o modo de ver o mundo, de relacionar-se com os demais, experimentando no cotidiano a vitória do amor do Crucificado-Ressuscitado na própria existência e na vida dos outros.

Geraldo De Mori, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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