Geraldo Luiz De Mori SJ
“Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu. […] O que é, já foi; e o que há de ser, também já foi; e Deus pede conta do que passou” (Ecl 3,1.15).
O ano de 2024 tem trazido à memória brasileira alguns acontecimentos importantes de sua história recente: os 30 anos da morte de Ayrton Senna, ocorrido no dia 01 de maio de 1994; os 40 anos das “Diretas Já!”, que movimentaram os anos de 1983-1984, tornando possível o retorno pleno da democracia; os 60 anos do Golpe Militar, ocorrido no dia 31 de março de 1964, que interromperam o processo democrático do país. A cultura contemporânea, denominada por muitos de pós ou hipermoderna, tem uma tendência a desinteressar-se pelo passado. O que importa para ela é o presente. Os grandes avanços tecnológicos do mundo digital contribuem para que esse fenômeno se acelere, uma vez que o que deve ser lembrado está nas agendas eletrônicas ou nas redes sociais, e a inteligência artificial recorda ao usuário quem aniversaria naquele dia ou quais episódios foram mais valorizados pelos que o seguem em suas redes e plataformas digitais. Mesmo o exercício de memorização, que jogava um papel importante nos processos de ensino-aprendizagem, já não é mais estimulado, pois basta a pessoa consultar a internet para saber as informações de que necessita.
Ao desprezo pela memória corresponde o estreitamento do horizonte do futuro, essa outra dimensão constitutiva do tempo humano. Um dos efeitos desse fechar-se no presente é uma espécie de estímulo contínuo a sorver todas as possibilidades que ele oferece. Não por acaso, muitos intérpretes da cultura atual a classificam também como cultura do prazer, que aciona, sobretudo, sentidos como o tato, o olfato e o paladar. Um dos principais mecanismos que o atual sistema econômico tem promovido para responder a esse “excesso de presente”, é o do consumo, e o consumo nem sempre visa o futuro, daí que a maior parte dos produtos são “descartáveis”. Daí que também muitos elementos que sempre foram importantes na vida passam igualmente a ser descartáveis.
Uma das afirmações mais conhecidas da Encíclica Laudato sí,’ do Papa Francisco, é que “tudo está interligado” (LS 16, 91, 117, 138, 240). Em geral, ao dizer isso, pensamos imediatamente no meio ambiente, que conecta não só todos os seres vivos entre si, mas também com o mundo natural, ou seja, com a terra e os minerais que a compõem, a água, o ar. Mas é importante expandir essa ideia, para outros elementos que os do mundo natural e vital. O ser humano não só conhece, mas sabe que conhece. Ora, para que isso aconteça, o processo evolutivo foi imprimindo em sua dimensão intelectual e espiritual muitos mecanismos que são necessários para que possa tornar-se humano. A dimensão temporal é um deles. Santo Agostinho, no Livro 11 das Confissões, já havia mostrado isso, indicando que a ideia de tempo se imprime na “alma” do ser humano como “memória” (= passado), “expectativa” ou “espera” (=futuro), atenção (= presente). Outros filósofos, como Kant, Bergson, Husserl, seguem na mesma direção, não tanto associando a temporalidade à alma, mas à capacidade de conhecimento do sujeito ou à sua consciência. Portanto, o excesso de “presente”, certamente pode provocar danos graves à hominização. Prova disso, por exemplo, é o desprezo de certos grupos ideológicos atuais pelos acontecimentos importantes da história, o que é chamado de negacionismo.
A questão do tempo é tão importante na constituição mesma do humano, que alguns filósofos atribuem sua descoberta ao judaísmo. E o mais interessante é que essa descoberta se deve a dois aspectos essenciais da relação do judaísmo com o tempo, que foram herdados pelo cristianismo: a obrigação de fazer memória, de não esquecer do passado, que é constitutiva do próprio Credo de Israel, que confessa um evento acontecido no passado, a aliança; a expectativa de uma intervenção divina no futuro, associada à ideia da fidelidade divina à promessa. A fé cristã continuamente faz memória do acontecimento Jesus Cristo, sobretudo de sua vida, paixão e morte, e vive da esperança de seu retorno, quando tudo será reconciliado, e “Deus será tudo em todos” (1Cor 15,28). Fazer memória e esperar são noções fundamentais a partir das quais o mundo marcado pela herança bíblica foi gestando, dando origem à noção de história, que jogou um papel importante ao longo desses mais de dois mil anos de cristianismo.
Mercedes Sosa, na canção “Cambia, todo cambia” é, sob certo ponto de vista, herdeira dessa compreensão da importância do tempo e das mudanças que ele vai instaurando na existência, ajudando-a a traçar um itinerário, com passado ou começo, presente ou continuidade, e futuro ou término, conclusão. O “presentismo” é a ausência de tempo. Ele não só dá origem a negacionismos, no campo social, político e cultural, mas também afeta o cotidiano, criando o desejo infinito de consumo, e produzindo tantas “doenças psíquicas”, como a Síndrome de Burnout, que, no fundo, é a aceleração do presente, não só do ponto de vista das sensações, mas também no da produtividade, descartando aqueles (as) que “quebra” e dos (as) quais exaure todas as forças e energias.
O ato de fazer memória e o estímulo a “ampliar os horizontes” são, portanto, fundamentais na existência humana. Do ponto de vista social, político, cultural e religioso, os “grandes acontecimentos” do passado são os que convidam a celebrar ou a comemorar. Mas, segundo o filósofo judeu-alemão Walter Benjamin, há acontecimentos do passado, muitas vezes interrompidos ou não valorizados, ou até mesmo reprimidos, que podem ser a “janela” ou a “porta” através da qual o novo pode irromper na história, seja na de povos, mas também na de grupos humanos e de pessoas em particular. A psicanálise já tem estudado isso há muito tempo, mostrando o lugar do trauma na formação da identidade, pois ele recalca uma memória dolorosa, mas que precisa vir um dia à luz, para que possa deixar despontar a cura, a redenção, ou seja, a reconciliação da pessoa com sua história de vida. O que vale para a cura psicanalítica, também vale para grupos e coletividades maiores, como povos e nações. Tem muita memória que é recalcada, reprimida, porque remete a eventos dolorosos, que não podem ainda vir à linguagem. Segundo Benjamin, essas memórias são muitas vezes “revolucionárias”, pois afetam, sobretudo, os injustiçados e esquecidos, que sofreram todo tipo de humilhação.
No caso dos três acontecimentos rememorados no Brasil nesses últimos tempos, certamente alguns remetem a momentos dolorosos, como o da perda de um ícone que alimentava o “orgulho nacional”, como é o caso de Ayrton Senna. Outro, também no campo do traumático, é o dos 60 anos do início da Ditadura Militar, que perseguiu pessoas, torturou, matou, mas que nunca foi devidamente objeto de uma reparação, e que continua espantando os que acreditam na criação de uma nação mais justa. E é para isso que aponta a memória das Diretas Já! Ela lembra o que houve de melhor nas forças sociais e políticas do país, que alimentaram o desejo do retorno à democracia. É importante recordar esses acontecimentos, para que as novas gerações possam aprender com eles, pois o esquecimento é a mãe de todos os fascismos que insistem em retornar, mesmo depois de tantos horrores, lembrando que só é possível aprender com o passado, se de fato ele volta, não como acusação, mas, como no memorial eucarístico, enquanto lugar de descoberta da luz que brota de um amor que cura e salva a memória.
Geraldo Luiz De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE