Pe. Jaldemir Vitório SJ
Os dias que antecedem a Festa de Pentecostes convidam-nos a refletir sobre a onda pentecostal que se abateu sobre a Igreja Católica, bem como outras de matriz protestante, a ponto de dar-lhes uma guinada e lhes impor um rumo, nem sempre, evangélico. Pode-se falar de pentecostalização das igrejas cristãs! Temas fundamentais da catequese evangélica foram deixados de lado, obscurecidos por uma pauta questionável, embora se apresentando com o título pomposo de “renovação”.
Chama a atenção a substituição da igreja-comunidade pela igreja-massa dos grandes eventos, das louvações e dos gurus-midiáticos. Perdeu-se o senso do sagrado, por exemplo, quando não se tem pudor de profanar a Eucaristia com ritos extravagantes, desprovidos de sentido litúrgico e teológico, como acontece nos famigerados “cercos de Jericó”. A bizarrice de falar em línguas, numa algaravia hilária, não encontra fundamento na tradição neotestamentária, a não ser com a interpretação enviesada de certas passagens da tradição paulina, adaptada ao gosto pentecostal, que não se dá ao trabalho de ir fundo na leitura dos textos. A compreensão dos dons e carismas para o serviço do Povo de Deus, a partir do Espírito Santo, desconectado do Pai e do Filho, uma heresia tácita, tem gerado situações incômodas de carismáticos opondo-se e rejeitando os que consideram não serem renovados por não terem sido batizados no Espírito. Aliás, o chamado “Batismo no Espírito” carece ser explicado, com a devida fundamentação bíblico-teológica, para não atropelar o Batismo em nome da Trindade.
O peso dado às falas dos gurus pentecostais constitui-se, no âmbito católico, numa espécie de magistério paralelo, a ponto de certos grupos mais radicais se darem o direito de ignorar os ensinamentos do Papa Francisco, como se contrariasse as doutrinas do pentecostalismo católico, apesar do apoio que dá aos carismáticos e, quanto sei, não levantar a questão do perigo que representam para a fidelidade à fé cristã, tão bem expressa na catequese neotestamentária.
A narração dos Atos dos Apóstolos 2,1-13 – a vinda do Espírito Santo –, lida na Festa de Pentecostes, foi assumida como fundamento do pentecostalismo. No entanto, uma interpretação superficial e apressada leva os carismáticos a tomá-la como crônica da vida da igreja primitiva, ou seja, um fato acontecido tal qual está descrito. Essa leitura desconhece a real finalidade da catequese neotestamentária e seu gênero literário, chaves importantes para sua correta compreensão.
Tentarei explicá-los, com a brevidade exigida pelo presente texto. O autor dos Atos do Apóstolos, identificado como o evangelista Lucas, ajuda seus leitores e ouvintes a compreenderem o que se passa com a missão de Jesus de Nazaré, confiada aos apóstolos para ser levada até os extremos do mundo. O narrador-catequista constata que o medo inicial dos discípulos foi vencido por uma coragem impressionante, que os levou a enfrentar toda sorte de perigos e ameaças, tal era o convencimento de que Jesus de Nazaré e o Evangelho do Reino deveriam ser anunciados a todos os povos, superando todos os limites e barreiras. A extensa lista de povos, referidos nos versículos 9-10, corresponde aos que viviam ao redor do mar Mediterrâneo, de leste a oeste e de norte a sul. Era uma forma de dizer que a mensagem do Evangelho chegara aos confins da terra, como desejava o Ressuscitado ao enviar seus discípulos-missionários (Mt 28,19; Mc 16,15).
O texto afirma: “cada qual ouvia os apóstolos falarem em sua própria língua (em grego: dialekto)” (v. 6) e “ouvimo-los [os apóstolos] em nossas línguas (em grego: glossa) apregoarem as maravilhas de Deus” (v. 11). Para compreender o texto, deve-se fazer uma distinção entre língua e linguagem. As línguas estão codificadas nas gramáticas: português, inglês, italiano etc. A linguagem refere-se às inúmeras maneiras encontradas pelas pessoas para se comunicarem, às vezes, na contramão da gramática. Pensemos na linguagem dos jovens, bem diferente da linguagem dos adultos; a linguagem do pessoal do interior, distinta da dos habitantes das metrópoles; a linguagem das crianças, da internet, das gangues etc. Duas pessoas podem falar a mesma língua; entretanto, caso não encontrem uma linguagem adequada para se comunicarem, farão um diálogo de surdos. Ao revés, duas pessoas podem falar línguas muito distintas, mas, se esforçarem para encontrar uma forma de se comunicarem, correspondente à linguagem que possa viabilizar o diálogo entre elas.
Pois bem, os Atos dos Apóstolos ensinam que os apóstolos, por onde passavam, encontravam a maneira de comunicar o Evangelho numa linguagem inteligível para os diversos públicos aos quais se dirigiam. Afinal, não bastava falar a língua deles, caso não encontrassem a linguagem adequada para lhes comunicar a mensagem do Reino. O texto frisa o sucesso do esforço dos apóstolos, espalhados pelo mundo a fora, pois conseguiram falar a linguagem de todos os povos conhecidos na época, chamados de ecumene, donde vem a palavra ecumenismo. Eles serviam de exemplo para os missionários e as missionárias de todos os tempos e lugares, desafiados a proclamar o Evangelho do Reino numa linguagem compreensível para todos os tipos de ouvintes. Aprender uma linguagem vai além do esforço de aprender e conhecer uma língua. Embora falemos português, será preciso conhecer a linguagem de cada pessoa com quem desejamos partilhar a riqueza do Evangelho, se pretendemos, realmente, que a Palavra de Deus seja semeada em seu coração.
O ponto chave da cena de Pentecostes gira, sobretudo, em torno da pergunta: como os apóstolos, tão medrosos e inseguros, foram capazes dessa proeza? O catequista sugere a resposta: porque estavam “cheios do Espírito Santo” (v. 4), que lhes fora dado como um dom “vindo do céu” (v. 2), semelhante a “línguas de fogo que se distribuíram e foram pousar sobre cada um deles” (v. 3). Em outras palavras, tudo quanto realizavam atribuía-se à força divina derramada sobre eles, de modo a enfrentarem e a superarem todos os empecilhos da missão, mormente, o contratempo da comunicação com as pessoas, destinatárias da pregação. Esse entrave foi superado com a capacidade de falar linguagens acessíveis aos múltiplos interlocutores, pela ação do Espírito Santo.
A compreensão do Espírito Santo derramado sobre os discípulos no início da missão, narrado nos Atos dos Apóstolos, deve ser completada com a narração do Espírito derramado sobre Jesus de Nazaré, no começo de seu ministério, como está em Lucas 4,16-21. A experiência de Jesus serve de ponto de referência para a posterior experiência dos apóstolos, no sentido de esclarecer como o Espírito atua na vida dos missionários. Servindo-se de um texto do profeta Isaías, Is 61,1-2, Jesus declara: “o Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e recuperar a vista dos cegos; para restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar um ano da graça do Senhor”. Daqui se entende que o Espírito Santo de Deus é espírito de ação e não de falação e gritaria, como acontece nos ambientes carismáticos de igrejas “cristãs”. Os falatórios embolados – glossolalia – de certos encontros pentecostais estão longe de expressar a autêntica ação do Espírito Santo.
O ministério de Jesus de Nazaré revela como o Espírito Santo levou-o a falar a linguagem da misericórdia e da solidariedade, da libertação e da restituição da dignidade dos seres humanos, da esperança e do anseio de uma vida nova. Por conseguinte, uma linguagem dirigida aos seres humanos em suas carências, em vista de resgatá-los, e não blábláblá exótico descolado da realidade.
A Festa de Pentecostes convida-nos a repensar a pessoa e a ação do Espírito Santo, na vida do mundo e da Igreja, partindo da catequese original, a catequese neotestamentária, privilegiando o ministério de Jesus de Nazaré. Lá, encontraremos o Mestre, ungido pelo Espírito Santo para fazer o bem; encontraremos as comunidades dos discípulos e das discípulas, repletos do Espírito que os tornava capazes de falar o Evangelho do Reino na linguagem de todos os povos da ecumene e de socorrer os pobres e os sofredores em suas necessidades. Suspeito que os pentecostais católicos e protestantes não estão interessados, tampouco preparados, para esse repensamento. Que pena!
Pe. Jaldemir Vitório SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE