Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM
Haveria alguma relação entre o mistério da Trindade santíssima e a exuberante e intrincada trama da Criação? Noto o que diz o filósofo I. Kant (1724-1804) sobre a total irrelevância da doutrina trinitária. Na opinião dele, dessa doutrina não extraímos nada de importante por se tratar de algo que supera todos os nossos possíveis conceitos. Além do mais, a distinção das pessoas em Deus, segundo ele, não implicaria em nada de significativo para a conduta humana.
Estamos, ao contrário, convencidos de que a resposta à questão inicial seja afirmativa. Somos de opinião que exista, de fato, uma relação íntima entre as criaturas tomadas em seu conjunto e o Deus trino e uno em quem cremos. E, por essa razão, propomos a contemplação da inteira realidade criada como: dom do Pai, corpo de Cristo e morada do Espírito Santo.
A Criação é dom do Pai. O próprio termo criação remete-nos à experiência do dom, uma vez que pressupõe o reconhecimento da relação primordial entre Criador e criatura. Nesse sentido, “criação” difere substancialmente de termos como, por exemplo, “natureza” ou “cosmos”. Assumir-se como criatura é, no fundo, reconhecer a gratuidade da vida. Poderíamos existir de outra forma ou sequer existir. No entanto, existimos! Nossa simples existência revela um desejo amoroso e gratuito, uma intencionalidade primordial. Somos queridos por Alguém que se nos revelou como Pai criador. Não existem necessidades intrínsecas que possam justificar nossa existência. Existimos enquanto desejados e amados por Alguém. Não existem razões, portanto, que expliquem o motivo de nossa existência. Não há nada fora de Deus que o possa condicionar em sua decisão. A complexidade de tudo quanto existe é habitada pelo amor gratuito do Criador, expressa no cuidado e na ternura para com cada criatura e para com todas as criaturas. Daí a importância de se perscrutar as interpelações do Criador em nossa interioridade, nas relações interpessoais, nos meandos sutis da história e nas fibras mais íntimas da inteira realidade criada. Enquanto criaturas, somos radicalmente diferentes do Criador. Somos diferentes, não propriamente separados, e menos ainda fadados a uma oposição irreconciliável. Essa diferença é a condição que torna possível nossa decisão livre e responsável pela relação, com vistas ao encontro e à comunhão.
A Criação também é corpo di Cristo. O mistério da Encarnação constitui o horizonte no interior do qual se situa a complexidade da inteira realidade criada. Uma vez que tudo quanto existe foi criado n´Ele, para Ele e por meio d´Ele, Cristo se revela como o primogênito de toda criatura (cf. Col 1,12-20) e, ao mesmo tempo, Aquele que reúne e condensa em si o conjunto da criação (cf. Ef 1,9-10). A Encarnação emerge, portanto, como o sentido último da Criação. Se, pois, a Criação encontra seu sentido mais profundo no mistério da Encarnação, então, significa que cada criatura carrega em si traços do Filho de Deus. Enquanto memorial do mistério pascal de Cristo, vértice da Encarnação, a Eucaristia representa e atualiza a iniciativa do Pai que, no seu Filho e mediante a força de seu Espírito, abraça a criação inteira, discernindo e potencializando a singularidade de cada criatura. A corporeidade de Cristo constitui aquele nó que une a existência de cada pessoa humana à história da humanidade e a toda a Criação. E tudo isso graças ao mistério da Encarnação do Filho de Deus, cujo vértice é o mistério pascal de cristo culminado na efusão do Espírito Santo. Com efeito, dilatando o único “corpo de Cristo”, o Espírito Santo propicia e manifesta as reais extensões salvíficas do mistério pascal de Cristo.
A Criação se nos afigura, enfim, como morada do Espírito Santo. Os textos do Novo Testamento testemunham a peculiar missão do Espirito Santo. Doado generosamente à comunidade dos fiéis, o Espírito Santo opera a santificação – mais especificamente a cristificação – do gênero humano, das comunidades cristãs, da história e da inteira Criação. Ele vai transformando, aos poucos, cada pessoa na imagem perfeita de Jesus Cristo. Igualmente presente nas comunidades eclesiais, o mesmo Espírito as transforma no corpo de Cristo. Presente na história, Ele a fermenta a partir de dentro até que se torne, para todoso os efeitos, o reinado de Cristo. O Espírito Santo, enfim, age misteriosamente por entre os meandros da inteira criação, despertanto a saudade da sua origem e conduzindo-a na direção de seu fim último. E assim Ele realiza a reconciliação da inteira criação, de tal forma que, conformada a Cristo, possa ser reconduzida a Deus Pai, autor e princípio de tudo. O Espírito não age, porém, de maneira espalhafatosa recorrendo a sinais e portentos extraordinários. Ele age internamente e suas moções vão do interior ao exterior. O Espírito Santo penetra nas fibras íntimas da inteira realidade criada, se insere nos meandros sutis da história e vem habitar no âmbito mais secreto do ser humano, para iniciar, a partir de dentro, sua lenta obra de santificação. Isso não quer dizer que sua presença não se faça sentir, nem que sua ação careça de eficácia. Ao contrário, sua maneira íntima e discreta de agir nos revela que toda autentica transformação se dá sempre de dentro para fora. A singularidade do Espírito Santo se revela ainda em seu modo próprio e peculiar de se fazer presente: ser ele mesmo no diferente de si. Por essa razão, Ele se esconde em cada criatura e na complexidade da história e do mundo criado no intuito de discernir e potencializar as singularidades e alteridades que compõem as relações interpessoais, a trama da história e a complexa rede da Criação. Mediante o Seu Espírito, Deus se revela como a interioridade mais íntima de cada criatura e, portanto, da complexidade da Criação. Vindo habitar na interioridade de cada criatura, o Espírito fomenta o desabrochar de sua singularidade e, vindo a habitar no coração da inteira realidade criada, a reconhece em sua riqueza e pluralidade, fomentando experiências de verdadeira comunhão.
Na ótica cristã, portanto, a relação entre transcendente e imanente não obedece a esquemas dualistas típicos das seculares tradições religiosas ou das clássicas escolas de pensamento. No Ocidente, essa polarização tem produzido rígidos monoteísmos com suas respectivas cosmologias que desprezam tudo o que é natural, histórico, humano e material. Mas, por outro lado, tem suscitado panteísmos que confundem criador com criatura, provocando graves incongruências. Professando a fé no Deus trino e uno, as comunidades cristãs testemunham uma relação peculiar entre trascendente e imanente: nem pura transcendência, nem mera imanência; mas o reconhecimento da transparência divina por entre os interstícios da entramada teia da Criação.
Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
Trindade, de Andrei Rublev (sec. XV)