Marília Murta de Almeida
Para falar sobre o amor é necessário encontrar um atalho em que não se caia em fórmulas fáceis ou, ao contrário, em algum tipo de ceticismo que afirme sua impossibilidade. É, portanto, me esgueirando num atalho em que o mato denso arranha e quase faz desistir, que volto ao tema do amor.
O desejo – ou mesmo a necessidade – de ser amado parece ser uma constante humana. A ausência de amor gera dores muitas vezes incuráveis no desenvolvimento de uma criança. Nas relações entre adultos, esse é um tema recorrente e não surpreende que possamos já na idade madura chorar a falta de amor dos pais, por exemplo. Entre casais, a dúvida sobre ser ou não amado gera ciúmes, tristezas, raivas que podem culminar em atos de violência.
Por tudo isso, é bastante instigante ler essas linhas de Clarice Lispector no conto “Os desastres de Sofia”, que parecem inverter os pesos entre amar e ser amado:
… só naquele instante de mel e flores descobria de que modo eu curava: quem me amasse, assim eu teria curado quem sofresse de mim. (…) Pelo menos uma vez ele teria que amar, e sem ser a ninguém – através de alguém. E só eu estivera ali. (…) Através de mim, a difícil de se amar, ele recebera, com grande caridade por si mesmo, aquilo de que somos feitos.
Amar, portanto, é a realização daquilo de que somos feitos. A narradora da história se vê no lugar daquela que foi ou está sendo amada. E por isso, por ser um objeto à disposição do amor, ela cura quem a ama. Se nos estendermos um pouco mais na liberdade da interpretação, podemos entender que a existência de cada um de nós é uma dádiva para os outros, porque assim têm a quem amar.
O que o texto sugere é que o movimento do amor em quem ama é curativo e, mais ainda, que é a realização mesma do destino humano. Deste modo, não amar seria mais doloroso do que não ser amado. Não amar nos lança na patologia de nos distanciarmos da realização humana e aquele que não ama seria o mais miserável. Sugere ainda que sabermo-nos amados nos confirma como capazes de curar. Como consequência dessa ideia, podemos entender que o simples fato de nos dispormos ao amor do outro nos envolve no movimento curativo do amor e assim nos põe no caminho da realização do destino humano. Porque também precisamos aprender a ser amados, como a narradora nos mostra no final do conto:
… E foi assim que no grande parque do colégio lentamente comecei a aprender a ser amada, suportando o sacrifício de não merecer, apenas para suavizar a dor de quem não ama. Não, esse foi somente um dos motivos. É que os outros fazem outras histórias. Em algumas foi de meu coração que outras garras cheias de duro amor arrancaram a flecha farpada, e sem nojo de meu grito.
Suportar ser amada, então, é fruto de lento aprendizado em que parece que também aprendemos a nos amar, perdoando o que nos faria sentir não merecedores do amor de um outro. Consentir em ser amado é, assim, amar-se. E parece ser, ao mesmo tempo, já amar, pois acontece na compaixão pela outra pessoa que também está aprendendo e precisa ter suavizada sua dor de não amar.
Assim, a dor e o medo de não ser amado seriam faces de nosso pressentimento do risco de sermos deixados de fora do movimento do amor. Envolvidos na dança como objetos do amor de alguém que se realiza nos amando, somos preparados para também amar. A dor de não ter a recompensa do amor correspondido é incomparável à dor da impossibilidade de amar. A primeira faz parte dos movimentos do amor. A segunda é a constatação de estar fora dessa dança.
E a dúvida sobre ser ou não amado é reflexo da dúvida mais intrínseca sobre ser ou não capaz de ser amado, ou seja, de considerar-se merecedor do amor de alguém num movimento de amor a si mesmo. O início do movimento amor é então uma convocação à plena participação numa dança em que amar e ser amado são atos que se implicam um no outro. Receber o amor de alguém é forçosamente iniciar o movimento do amor de si; e iniciar esse movimento é já tornar-se capaz de amar um outro.
Assim, somos dádivas de amor apenas pelo fato de existirmos. Existir me coloca como um objeto disponível ao amor de alguém e isso é um impulso para a perpetuação da dança do amor. O fato de que entramos no mundo como seres incapazes de sobreviver sem o cuidado de um outro e, além disso, como seres normalmente percebidos como encantadores e muito fáceis de amar, parece ser o empurrão da vida – de Deus? – para que essa dança se inicie para cada um mais rapidamente e com um acréscimo de alegria.
Marília Murta de Almeida é professora e pesquisadora no departamento de Filosofia e Teologia da FAJE
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