Élio Gasda SJ
A paz se transformou na maior das utopias.
A história da humanidade é uma sucessão interminável de guerras que faz do planeta “o grande cemitério do gênero humano” (Imannuel Kant, À Paz Perpétua).
Conforme a 18ª edição do Índice Global de Paz do Think Tank International Institute for Economics & Peace (https://www.economicsandpeace.org/), publicado em 11 de junho de 2024, o mundo tem número recorde de guerras desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Os últimos três anos foram os mais violentos. Dois bilhões de pessoas estão diretamente afetadas em 92 países. O impacto econômico global da guerra foi de US$ 19,1 trilhões em 2023 (13,5% do PIB global).
“A guerra alimenta a si mesma” (Tito Lívio). É o negócio mais lucrativo o século XXI. Os gastos militares globais atingiram marco histórico em 2023. Segundo o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI. www.sipri.org.), gastos com defesa totalizaram US$ 2,4 trilhões (2,3% do PIB mundial). Os EUA gastaram US$ 916 bilhões (37% do total). Silicon Valley, as Big Tech e o complexo industrial-militar estão interligados com financiamentos de projetos de investigação e infraestrutura. Instituições financeiras estadunidenses investiram quase 1 trilhão de dólares em dois anos na indústria armamentista, informa o “Relatório Finance for War. Finance for Peace”, da Global Alliance for Banking on Values, apresentado em fevereiro de 2024. Um caça F-35 equivale a 3.244 leitos de UTI, um submarino nuclear custa o mesmo que 9.180 ambulâncias. Dados divulgados em abril pela campanha Internacional pelo Banimento de Armas Nucleares (www.icanw.org) revelou que as principais potências militares aumentaram consideravelmente seus investimentos em armas nucleares: US$ 91 bilhões, ou US$ 2,8 mil por segundo. O maior gasto vem dos EUA, com US$ 51,5 bilhões.
Não existe uma paz abstrata, separada do contexto histórico. As tais “pazes” são imposições dos vencedores sobre os vencidos. O objetivo da guerra é a conquista de uma vitória que permita ao vencedor impor sua vontade, suas regras e seus valores aos derrotados, nunca é a paz pela paz (José Luis Fiori, Sobre a guerra).
Para os derrotados, esta paz não é fruto da justiça. A paz conquistada pela guerra para submeter os derrotados é o ponto de partida da próxima guerra. O “ressentimento dos derrotados” (Abbé de Saint-Pierre) é rearticulado em tempos de trégua. Portanto, essa paz não é sinônimo de ordem. Alguns poucos são mais fortes que outros para começar uma guerra e vencê-la. A supremacia militar dos Estados Unidos se mantém por meio de guerras contínuas. Não haverá paz nesta ordem.
“A guerra é a continuação do controle político por outros meios” (Carl von Clausewitz). O século XXI iniciou com George W. Bush declarando que a missão da guerra infinita era trazer paz e segurança ao mundo. As grandes crises propositadamente foram provocadas pelo próprio poder hegemônico para garantir sua supremacia bélica e seus interesses geopolíticos. Poder militar e poder econômico são inseparáveis.
A ordem mundial é constituída de hierarquias, instituições e árbitros estabelecidos pelas potências militares por meio de suas guerras. O poder precisa ser reproduzido e acumulado de forma permanente. Mais, precisa ser temido pela sua força de destruição. Não existem critérios de arbitragem de conflitos internacionais neutros. A tal ordem internacional legitima o poder hegemônico imposto por meio da guerra. Alguém ainda acredita na imparcialidade do Conselho de Segurança da ONU?
Apesar de tantas e intermináveis guerras, a busca pela paz resiste como utopia universal. A paz, não a guerra, é horizonte do processo civilizador. A paz perpétua, escreveu Kant, é o fim último ao qual tende a história da humanidade: “A razão condena absolutamente a guerra como procedimento de direito e torna, ao contrário, o estado de paz um dever imediato (…). Exércitos permanentes (miles perpetuus) devem desaparecer completamente com o tempo (À Paz Perpétua).
A guerra é a pior das políticas, ensina Papa Francisco. “A guerra é um fracasso da política e da humanidade, uma rendição vergonhosa, uma derrota perante as forças do mal. Não fiquemos em discussões teóricas, tomemos contato com as feridas, toquemos a carne de quem paga os danos” (Fratelli tutti, n. 261).
“Quem faz a guerra esquece a humanidade, não olha para a vida concreta das pessoas, mas coloca diante de tudo os interesses de poder. Quem faz a guerra baseia-se na lógica diabólica e perversa das armas, que é a mais distante da vontade de Deus” (Oração do Ângelus, 27 de fevereiro de 2022).
Felizes os que trabalham pela paz! (Mt 5,9).
Élio Gasda SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
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