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Cismas, excomunhões, heresias

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Geraldo Luiz De Mori, SJ

Se teu irmão pecar contra ti” (Mt 18,15)

 

Dois acontecimentos eclesiais recentes chamaram a atenção de muitos fiéis e merecem uma atenção particular: a convocação, pelo Dicastério da Doutrina da Fé, do ex-núncio apostólico dos Estados Unidos, Dom Carlo Maria Viganò, por suas posturas de ruptura com a Igreja católica, o Concílio Vaticano II e o atual pontificado de Francisco, o que poderá conduzir a um processo de excomunhão; e o anúncio de que um grupo de Irmãs Clarissas de Belorado (Burgos) e Orduña (Viscaya), na Espanha, foi excomungado pelo bispo de Burgos, Dom Mario Iceta, por conta de suas posturas tradicionalistas radicais, ligadas às orientações do fundador da Pia União do Apóstolo São Paulo, Dom Pablo de Rojas Sánchez-Franco, que foi excomungado em 2019 pelo bispo de Bilbao, na Espanha.

Cismas, excomunhões, heresias, palavras que pareciam ter desaparecido do vocabulário da Igreja católica, têm voltado com certa frequência nos últimos anos. A excomunhão mais importante após o Concílio Vaticano II se deu em 1988, aplicada aos bispos que ordenaram quatro novos bispos da Fraternidade Sacerdotal São Pio X, fundada por Marcel Lefebvre após o evento conciliar e contra suas orientações. Do Brasil esteve nesta cerimônia o então bispo emérito de Campos, RJ, Dom Antônio de Castro Mayer. O movimento tradicionalista não tinha então muita presença no país, sendo associado aos membros da TFP (Tradição, Família, Propriedade) ou aos padres de Campos ligados à União Sacerdotal São João Maria Vianney, bem como aos fiéis que eram por eles assistidos.

Embora os dois episódios recentes de ameaça de excomunhão e de excomunhão de fato não pareçam ter relação com a Igreja do Brasil, é importante não os ignorar ou pensar que estejam distantes da realidade eclesial nacional. Com efeito, o tradicionalismo católico pós-conciliar teve relevância sobretudo em alguns países europeus e nos USA. João Paulo II, em cujo pontificado aconteceu o principal cisma católico no século XX, buscou de muitas maneiras estabelecer o diálogo e a comunhão com os grupos vinculados ao tradicionalismo. Seu sucessor, Bento XVI, revogou, em 2009, a excomunhão da Fraternidade São Pio X. Já antes, em 2007, ele havia reduzido as restrições às celebrações da missa no ritual de São Pio V para toda a Igreja, o que foi interpretado em muitas dioceses como alternativa para quem não quisesse celebrar segundo o que tinha sido estabelecido pela reforma litúrgica do Vaticano II. No Brasil, a “missa em latim” atraiu em vários lugares os jovens ligados a movimentos de perfil mais conservador ou em busca de afirmação de identidade. A estética medieval difundida pelos Arautos do Evangelho, grupo nascido da ruptura com a TFP, também contribuiu para ampliar a visibilidade do tradicionalismo no país. A presença desses grupos e de outros similares nas novas mídias digitais, como também a de pregadores e “professores” cujo discurso privilegiava a doutrina e a devoção baseada em movimentos anteriores ao Vaticano II, ajudou a ampliar sua influência no seio das comunidades católicas, sobretudo entre grupos espiritualistas.

Em 2016, no Rio de Janeiro, foi criado o Centro Dom Bosco de Fé e Cultura, que tem se tornado um dos principais porta-vozes do tradicionalismo, com uma presença massiva nas novas mídias, e um discurso virulento contra tendências eclesiais e teológicas julgadas por eles como “heréticas”, supostamente condenadas pelo magistério da Igreja. Fortemente conectado e com muitos recursos financeiros, esse grupo e os que se assemelham a ele, têm feito uma verdadeira cruzada contra o modelo de catolicismo nascido da recepção do Concílio Vaticano II no Brasil. Além de uma condenação sistemática da teologia da libertação, apontada como herética, as mídias tradicionalistas não hesitam em atacar a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), bispos, padres e movimentos eclesiais comprometidos com a causa popular, sobretudo os que estão ao serviço dos mais pobres ou que defendem a causa da justiça e os direitos humanos.

Alguns influenciadores “católicos” mais presentes nas mídias sociais próximos ideologicamente desses grupos parecem ter se tornado o novo magistério da Igreja, pois não hesitam em condenar como heréticos quem pensa diferente deles, ou os que apoiam certas causas tidas como contrárias às que eles consideram ser a “verdadeira doutrina da Igreja”. Ativos na publicação de conteúdos, eles têm também se destacado como difusores de autores, obras e devoções anteriores ao Concílio Vaticano II, de corte devocional ou doutrinal, recriando o dualismo entre mundo e Igreja, que caracterizou o período anterior ao Concílio. No Brasil, quem declara cismático, herege ou quem excomunga tem sido esses grupos. O episcopado nacional, buscando conciliar as diferenças que caracterizam o tecido eclesial do país, tem manifestado grande paciência com esses grupos e seus representantes. Para alguns intérpretes, essa postura é extremamente danosa para o conjunto do povo de Deus, que não tem a orientação de seus pastores para um real discernimento sobre o que é ou não estar em comunhão com as orientações da Igreja. Para outros, há muita divisão entre os bispos e muitos deles, ao não se pronunciarem, na verdade, estão apoiando a polarização introduzida no seio do catolicismo pela ação programada dos que se arvoram em novos representantes do magistério eclesial no país.

O processo sinodal, que tem como tema “Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação, missão”, quer levar todas as tendências que marcam o catolicismo no mundo global, a um diálogo, fazendo-as caminharem juntas, num mundo plural e numa Igreja também cada vez mais plural. A própria ideia de sinodalidade é plasmada nesta convicção. No entanto, quem convive no dia a dia das comunidades, muitas vezes se pergunta, mas como caminhar junto com quem não quer? O que fazer quando se é visto pelo interlocutor do caminho comum como inimigo a ser eliminado? No discurso comunitário de Mt 18,15-20, Jesus diz que se um irmão pecar contra o outro na comunidade, é necessário chamá-lo, primeiro a sós, para que a reconciliação se faça nesse diálogo a dois. Caso isso não aconteça, então, é importante chamar mais um ou dois. Se não der certo, então é importante chamar a Igreja, e, em último caso, caso ele não escute a Igreja, então deve ser tido como “gentio ou publicano”, ou seja, não mais membro da comunidade (gentio), ou pecador (publicano). O diálogo e o perdão são, portanto, o caminho a ser trilhado, antes da ruptura de qualquer vínculo. O percurso feito pela Igreja com os tradicionalistas, depois do cisma de 1988, mostra bem isso, pois houve um esforço e uma paciência enorme para não romper os laços. Porém, os desdobramentos que se seguiram indicam que os que haviam rompido a unidade não aprenderam com o que aconteceu. É o que mostra sua atitude posterior e a dos novos grupos inspirados neles, que têm alimentado a postura cismática, ao se colocarem como a “verdadeira Igreja” contra a Igreja do Vaticano II, alimentando a polarização e, com as novas mídias, espalhando muita desinformação.

Ao declarar alguém como “herege” ou “cismático”, o que muitas vezes se traduz em “excomunhão”, a Igreja não quer com isso “condenar” a pessoa ou o grupo assim punido. Não se trata de estigmatizar essa pessoa ou grupo, mas de mostrar-lhe que a opção beligerante fere a comunhão e inviabiliza o caminhar juntos. É como um “remédio”, que muitas vezes é amargo, mas pode trazer a cura. E a cura, na perspectiva eclesial, é a conversão, que se traduz em nova postura, e não simplesmente em afirmar da boca para fora que mudou, mas continuar com as mesmas atitudes e comportamentos. A “excomunhão” também é uma advertência, uma chamada de atenção, para que o caminho cismático seja evitado, pois não cria Igreja, ou seja, não é expressão daquilo que deveria caracterizar a comunidade de quem crê em Cristo: a de testemunhar a unidade entre si e nesta unidade mostrar que Deus está reconciliando os seres humanos e o mundo, não dividindo-os, para que de fato a Igreja seja esse sacramento da unidade e da fraternidade.

Geraldo Luiz De Mori, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

Imagem: Shutterstock

 

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