Geraldo Luiz De Mori, SJ
“Das profundezas, Senhor, clamo a ti” (Sl 130,1)
O ritual da Vigília Penitencial que concluiu o retiro preparatório da Segunda Sessão da XVI Assembleia Ordinária dos Bispos, realizada no dia 01/10/2024, contou com a seguinte estrutura: abertura, feita pelo Papa; leitura de Is 58,1-14; sete pedidos de perdão, redigidos pelo Papa e apresentados por sete cardeais, antecedidos por três testemunhas; leitura de Lc 18,9-14; homilia; oração final e bênção final do Papa. A expressão latina “De profundis”, com a qual começa o Salmo 130, resume bem o que foi vivido na Vigília. De fato, o clamor que brotou das testemunhas, os olhares a partir dos quais Francisco buscou expressar o que é necessário no caminho sinodal de conversão da Igreja, as palavras-preces apresentadas pelos sete cardeais, como expressão do sincero pedido de perdão, são manifestações de algo que brotou do mais profundo do coração de uma Igreja que se reconhece pecadora e chamada a buscar sempre a verdadeira conversão.
O texto de Is 58 começa com o imperativo “Clama bem alto”. A voz profética deve ecoar como um grito de denúncia dos crimes de seu povo, por seus pecados, resumidos por ele como “oprimir os operários”, “continuar as contendas e rixas”, bater nos outros”. As três testemunhas pelas quais essa profecia continua clamando bem alto hoje trouxeram três situações que feriram e ferem profundamente a dignidade de pessoas na Igreja e no mundo, que são expressões de seu pecado: os abusos, a situação dos migrantes e refugiados, a guerra. A primeira testemunha, Laurence Gien, barítono originário da África do Sul que vive na Alemanha, iniciou sua fala se dizendo “sobrevivente de um predador”, um padre que tirou dele, aos 11 anos de idade, aquilo “que nunca deveria ser tirado de nenhuma criança”. Minha história, diz ele, é uma dentre muitas. Os abusos causam “feridas que podem levar a vida inteira para serem curadas, se é que serão curadas”. Muitos sobreviventes são silenciados e a Igreja, muitas vezes, “esconde atrás de um véu de segredo os abusos”, sendo, por isso, “cúmplice desse anonimato” que “serve aos abusadores e não às vítimas”. A segunda testemunha, Sara Vateroni, diretora regional toscana da Fundação Migrante, junto com Solange, fala do drama dos migrantes e refugiados que conseguem ser resgatados. Sentimento de alegria pelos que sobreviveram, mas também de culpa, pelos que não conseguiram. Ela recorda a experiência do barco, que leva não tanto à solidariedade, mas à solidão e à luta para sobreviver, cada um sendo número, mais que pessoa. Fala também dos motivos que provocaram a saída de pessoas de suas casas e do sofrimento que isso significa, como dos voluntários que acolhem o estrangeiro que chegou ao porto. O terceiro testemunho é o da Ir. Deema, freira do mosteiro fundado pelo jesuíta Paolo Dall’Oglio, na Síria. Ela fala da experiência da dor profunda vivida na guerra, que não só destrói estradas e casas, mas os laços mais íntimos que prendem à memória, às relações. A guerra na Síria, segundo ela, primeiro isolou as pessoas e comunidades, levando a rotular o outro como inimigo, desumanizando-o e justificando sua eliminação. Muitos escolheram o caminho da violência, muçulmanos e cristão. Outros escolheram ajudar famílias carentes, acompanhando e servindo as crianças. A guerra traz à tona o que há de pior em nós, mas também o que há de melhor, unindo, criando solidariedade, não nos deixando ceder ao ódio, descobrindo a resistência não violenta, e, mesmo na aparência da ausência de Deus, sua presença em meio às ruínas.
No discurso que fez após esses testemunhos e após as orações apresentadas pelos sete cardeais, que foram elaboradas por ele, o Papa Francisco recorda que todos os que estão naquela cerimônia são como “mendigos da misericórdia do Pai” e pedem perdão. Ele quis “chamar pelo nome” os “maiores pecados” da Igreja, pois a tendência é escondê-los ou escolher palavras polidas para expressá-los. A Igreja é uma comunidade de fé, nasce e vive das relações. O pecado fere as relações ou as leva a adoecer. Só seremos críveis na missão, diz o Papa, se “reconhecermos nossos erros”, buscando curar as feridas causadas pelos nossos pecados. Retomando a parábola de Lucas, do fariseu e do publicano, o Pontífice chama a atenção para seus olhares. O do fariseu, que enche toda a cena, quer impor-se como um modelo, presumindo rezar, mas, na verdade, celebrando-se a si mesmo, mascarando suas fragilidades, esperando ser recompensado por seus méritos, privando-se da surpresa da gratuidade da salvação, dada pela misericórdia de Deus. Seu ego não tem espaço para nada e ninguém, nem para Deus. Muitas vezes a Igreja tem esse tipo de olhar e comportamento. Porém, continua o Papa, hoje todos somos o publicano. Temos ou desejamos ter os “olhos baixos”, sentimos ou desejamos sentir “vergonha dos nossos pecados”. Por isso, “não podemos invocar o nome de Deus sem pedir perdão aos nossos irmãos e irmãs, à terra e a todas as criaturas”. Só podemos ser uma Igreja sinodal, reconciliados. O perdão gera uma “nova concórdia na qual as diferenças não se opõem”.
Os pecados “nomeados”, ou seja, tornados palavras por quem reconhece tê-los cometido, são fundamentalmente sete. O primeiro, apresentado pelo Cardeal Oswald Gracias, de Bombaim, recorda a falta de coragem na busca da paz entre povos e nações, no reconhecimento da dignidade da vida humana. O segundo, apresentado pelo Cardeal Michael Czerny, Prefeito do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano, pede perdão por “termos transformado a criação de jardim em deserto, manipulando-a a nosso gosto” e por não termos feito nada para evitar isso. Pede também perdão por não “termos reconhecido o direito e a dignidade de cada pessoa humana, discriminando-a e explorando-a, em particular pelos povos indígenas”, além de termos sido “cúmplices de sistemas que favoreceram a escravidão e o colonialismo”, participando ainda da “globalização da indiferença”, sobretudo com relação à acolhida de migrantes. A oração apresentada pelo Cardeal Sean O’Malley, arcebispo emérito de Boston, lembra o fato de a Igreja ter sido cúmplice ou ter cometido abusos de consciência, de poder e sexuais. Os abusos de vulneráveis e crianças, diz ele, “roubaram a inocência e profanaram a sacralidade dos frágeis e indefesos”. O Cardeal Kevin Farrel apresenta o pedido de perdão pelas vezes que os homens na Igreja não reconheceram a dignidade das mulheres, tornando-as mudas e subservientes, e não poucas vezes exploradas. Lembra ainda as fragilidades e feridas das famílias e o roubo da esperança e do amor às novas gerações, não compreendendo os processos de seu crescimento e amadurecimento. O Cardeal Cristobal Lopez Romero, arcebispo de Rabat, apresenta o pedido de perdão pela Igreja ter desviado a centralidade do sacramento do pobre, fixando-o no altar, deixando de ser uma Igreja pobre e dos pobres, cedendo à sedução do poder e dos títulos, à tentação de ficar no centro, protegida nos espaços de autorreferencialidade, resistindo a sair rumo às periferias geográficas e existenciais. O Cardeal Victor Manuel Fernandez, Prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, pede perdão pelas vezes que não soube propor o “evangelho como fonte viva de eterna novidade, doutrinando-o e correndo o risco de o reduzir a um monte de pedras mortas a atirar aos outros”. Também pede perdão pelas vezes em que a Igreja deu justificação doutrinal a tratamentos desumanos, por não ser testemunha crível de que a verdade liberta e por ter obstruído as várias inculturações legítimas da verdade de Jesus Cristo. Pede perdão ainda pelas ações e omissões que impediram e continuam dificultando a recomposição da unidade da fé cristã e a autêntica fraternidade de todo o gênero humano. Finalmente, o Cardeal Christoph Schoenborn, Arcebispo de Viena, apresenta o pedido de perdão pelos obstáculos à construção de uma Igreja sinodal, sinfônica, consciente de ser o povo de Deus que caminha junto. Pede perdão pelas vezes que a Igreja não escutou o Espírito Santo, mas a si própria, defendendo opiniões e ideologias que ferem a comunhão de todos em Cristo, e por ter transformado a autoridade em poder, não escutando as pessoas, impedindo a participação de todos/as.
Oxalá a escuta dos clamores que tornou possível a nomeação dos pecados da Igreja e do mundo, possa levá-la à conversão do olhar, para que o caminho que esse sínodo quer ajudar a Igreja a trilhar, ajude-a a recuperar uma palavra que a torne crível no mundo.
Geraldo Luiz De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
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