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Fogos-fátuos

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Carlos Roberto Drawin

Eis que o fim de semana se anuncia. A cidade se agita. Os muitos que saem do trabalho para o merecido descanso se confundem com muitos os que se lançam na busca dos prazeres…a noite promete, “vai ser boa...” diz a canção! O que há em comum entre os cansados do trabalho e os pressurosos do prazer, entre as muitas fadigas das incessantes demandas e as muitas expectativas dos desejos? Talvez possamos dizer que uns e outros se perdem em decepção e desalento.

Numa sociedade cada vez mais competitiva, as pressões corporativas se intensificam até quase o insuportável e se projetam nos dias destinados ao repouso. A irritação difusa, o sono perturbado, a ansiedade crônica, o desassossego em relação ao futuro profissional e financeiro, as preocupações familiares, acabam por suscitar o escape para a realidade virtual alternativa.

Numa sociedade cada vez mais liberada de interdições ao gozo, tudo parece possível, as ofertas de diversão e consumo se multiplicam e os indivíduos correm em busca dos objetos que lhes proporcionariam a almejada satisfação. Contudo, nos encontros fugazes o brilho das pessoas e das coisas logo se apaga, e o aceno dos instantes de plenitude se esvaem rapidamente e dão lugar ao tédio.

O fim de semana termina e o ciclo das rotinas cada vez mais sobrecarregadas de afazeres mecânicos, imagens e informações dispersivas reinicia o movimento incessante que nos arrasta sem eira nem beira, sem propósito algum, senão o encobrir de cores e sons o vazio existencial que em nós se instala.

Mas não seriam essas palavras excessivamente carregadas de pessimismo? Estaríamos todos aprisionados nessa torturante roda de sonhos e fracassos, ilusões e decepções a girar incessantemente num movimento imóvel, pois carente de direção e sentido? Seria a vida humana apenas fogo-fátuo e esperanças vãs? Nossas boas intenções e denodados esforços estariam sempre marcados pela fatuidade de todas as atividades humanas?

Essas indagações não podem ser eludidas, pois não deixam de instigar continuamente o pensamento e, em torno delas, pode-se dizer, foi tecida a imensa rede simbólica da cultura humana. Assim se produziram as lendas e os mitos, os poemas e os dramas, os romances e os grandes sistemas filosóficos. Em torno delas, dessas indagações irrespondíveis, arranjamos e rearranjamos as nossas frágeis respostas, narramos os nossos descaminhos e contornamos infindavelmente as nossas dúvidas, perplexidades e angústias.  Tecemos, narramos e contornamos, mas, não se pode esquecer que a cultura, como uma rede, é seletiva no que é capaz de apreender e somente o é por deixar muito se perder. Com ela pescamos muitos peixes, fragmentos de sentido com os quais nos alimentamos em nossa longa e indeterminada jornada pessoal e histórica. Mas não se deve esquecer que se trata de uma rede lançada no imenso mar do mundo e que a vida é um fluxo contínuo a atravessar os seus espaços vazados. Apenas assim podemos pescar, por meio dos vazios, de outro modo confundiríamos a rede com o mar. E assim relata a lenda medieval acerca da meditação de Santo Agostinho sobre o mistério da Santíssima Trindade: passeando à beira-mar, ele observou uma criança tentando esgotar o mar transportando-o para um pequeno buraco na areia, e ele compreendeu a impossibilidade de conter o infinito no cadinho estreito de nossa inteligência. [1]

Palavras de pessimismo? Não seria melhor eleger uma atitude menos sombria e mais afirmativa, de adotar uma visão mais positiva sobre as pessoas e as coisas, de enfatizar afetos que sirvam de motivação e consolo? A advertência tem alguma razão de ser. A nossa época está atravessada por dilaceramentos difíceis de serem compreendidos. Por um lado, vivemos a exaltação de um presente constituído por acontecimentos que vêm e vão com a rapidez das imagens a sucederem velozmente nas telas dos computadores e celulares nos convocando e absorvendo quase imperativamente. Dos acontecimentos e imagens tentamos agarrar o que nos possa ser mais lucrativo e gozoso. Daí nascem a excitação e o frêmito anteriormente mencionados. Vez por outra acreditamos poder fixar um momento ou repeti-lo indefinidamente para dele extrair o máximo proveito, capaz de compensar tudo o que já se esvaiu.  Mas não há como fixar a sucessão dos momentos e a repetição neutraliza em indiferença o que antes parecia trazer a redenção. A pretensão individualista de tudo poder escolher livremente, de se assenhorear do tempo, é como o anverso narcísico na moeda corrente de nossas possibilidades. “Moeda corrente” como expressão a metaforizar a circulação acelerada e dissolvente do capital. Pois o mais visível nos grandes centros urbanos é a efígie maníaca naquela busca frenética anteriormente mencionada. A outra face da moeda, menos visível por ser mais encoberta pelo funcionamento das coisas, é a mensagem de impotência disseminada pelo mesmo capital que antes se aparentava libertário. Se queres, então podes! Mas o que podes? Um quase nada! Faça o que quiseres, desde que nada mude. Eis o lado sintomático, depressivo, obscuro e recolhido do imaginário social.  As multidões que se entrecruzam, os muitos que se divertem e se entediam são os mesmos que não descansam e se angustiam. Faces de uma mesma moeda.

Palavras de pessimismo? Não seria, antes, um modo de reconhecer na retórica libertária do individualismo um complemento ideológico das condições de trabalho cada vez mais adversas, da naturalização das cada vez mais profundas desigualdades sociais, da brutalidade dos jogos geopolíticos? Não seria, antes, um modo de inquirir o déficit de sentido encoberto no culto ao corpo e no imediatismo das sensações?

Certa dureza crítica não visa perturbar os espíritos, nem denunciar as alegrias simples que mitigam, nos corpos e nas almas, as dores e tristezas do dia-a-dia, não quer invalidar os gestos de amor, nem mesmo os mais singelos, porque são incomensuráveis em sua recôndita grandeza. Ao contrário, as mais diversas tradições sapienciais nos advertem acerca das aparências para nos convidar ao alongamento do olhar. Por quê? Porque todos nós gravitamos em torno de nós mesmos, somos atraídos pelos objetos da insaciedade do desejo e quando não os obtemos somos traídos por nossas paixões, possuídos pela cólera, a inveja, o ressentimento. Por isso, o filósofo alemão Arthur Schopenhauer em seus “Aforismos para a sabedoria da vida”, nos aconselha a levar conosco “uma grande provisão de precaução e indulgência. Pela primeira seremos protegidos de danos e perdas, pela segunda, de disputas e querelas[2]

 Carlos Roberto Drawin é professor emérito do departamento de Filosofia da FAJE

Imagem: Shutterstock

 

[1] Rosa, José M. da Silva. Introdução a Santo Agostinho. De Trinitate. Livros IX-XIII. www.lusoSofia.net. 2008. P. 09

[2] Schopenhauer, Arthur. Aforismos para a sabedoria da vida. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2016. P. 199.

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