Francys Silvestrini Adão SJ
Gustavo, querido irmão!
Enfim, chegou a hora de seu encontro definitivo com o Senhor da Vida e do Reino. Este é mais um passo de seu caminho de libertação, que, para um discípulo de Jesus, não pode ser visto como um abandono do mundo, mas de sua plenificação pela entrega total, pelo amor até o fim. E a páscoa de um grande irmão sempre é para nós, que ficamos para continuar o bom combate, um tempo favorável para louvar a Deus, que permanece gerando neste mundo filhos e filhas do Amor, e também para colher, como herança, algumas flores plantadas por uma vida que, ao ser macerada, oferece como dom o seu perfume. Por isso, ofereço-lhe, em gratidão, esta breve partilha, fruto da pequena colheita de um discípulo de Jesus amigo dos pobres, consagrado ao Deus da Vida em plenitude para todos, aprendiz de teólogo do Senhor do Banquete fraterno e eterno de todos os povos.
Você e eu sabemos que, ao longo da história do cristianismo, os cristãos e cristãs sempre foram convidados a voltar sua atenção para os pobres com um cuidado especial. Ao fazer isso, eles não estavam criando uma nova tradição, pois essa atitude já tinha um lugar de honra na primeira Aliança. As Escrituras Santas testemunham fielmente essa tradição, atestando que o apelo para cuidar dos pobres tece e costura o que chamamos de história da salvação. Os relatos dos Evangelhos insistem na atenção especial que Jesus dedicou aos “pequeninos” em seu ministério público, apresentando a proclamação da Boa Notícia aos pobres como um sinal dos tempos messiânicos. Esses mesmos relatos vão ainda mais longe quando ousam afirmar uma misteriosa identificação entre o Messias e os pobres. A alteridade – muitas vezes perturbadora – dos pobres torna-se um “sacramento” de Deus e de seu Cristo. Portanto, com os olhos abertos para a realidade, confrontados com a leitura das Escrituras, e especialmente dos Evangelhos, cada geração de discípulos e discípulas de Jesus é levada a fazer a pergunta: qual é a ligação entre a vida concreta dos pobres e a revelação do próprio Mistério infinito e insondável de Deus?
Como escutamos tantas vezes, grande mestre, a parábola do Juízo Final, no Evangelho segundo Mateus, traça uma linha que divide toda a humanidade em dois grupos: aqueles que agiram com caridade para com os necessitados e aqueles que, por alguma razão, preferiram não agir. A narrativa também registra o espanto de ambos os grupos com a identificação do Juiz universal com os necessitados encontrados no caminho. Esse espanto deixa claro que o reconhecimento de Deus nas pessoas necessitadas não é, de modo algum, evidente. É por isso que tanto precisamos de pessoas como você, querido e livre Gustavo, que entendem essa não obviedade inicial e o caráter dinâmico da Revelação, e nos provocam a entrar num verdadeiro encontro, uma verdadeira relação. Para além de tratados teológicos – por mais importantes que sejam! –, você nos deixa como legado a incontornável missão de nos interrogar sobre o lugar ocupado pelo encontro com os pobres em nossa vida e em nossa teologia, para buscarmos agir, cada vez mais, em coerência com este encontro, sinal do Reino anunciado e inaugurado por Jesus.
Sua espiritualidade encarnada, querido irmão, atesta que a experiência de um verdadeiro encontro com Deus só pode ocorrer por meio de uma atitude de busca e abertura aos outros. Sua experiência de fé, em comunhão com tantas outras pessoas, testemunha também que o verdadeiro encontro com os pobres é uma espécie de “teofania”, uma manifestação surpreendente e desconcertante do Senhor, que escolheu uma multiplicidade de formas para nos dar acesso ao seu amor pela humanidade. E quando Deus fala, a resposta daqueles que ouvem não pode ser apenas uma crença, mas também a conversão, a fé-em-ação. A Palavra de Deus tem o poder de renovar nossos planos, de endireitar nossos caminhos. Hoje eu entendo que a nobre e legítima preocupação com os pobres pode ser fruto da justa sensibilidade humana, mas reconhecer Deus no rosto desfigurado dos pobres e em seu intenso desejo de vida é da ordem da Revelação e da Mística.
Por isso, querido irmão Gustavo, eu colho e destaco na obra de sua vida doada três “olhares” que quero guardar em meu caminho espiritual e intelectual. São como três portais que preciso cruzar para não esquecer o Mistério da eleição dos pobres no plano salvífico de Deus: um olhar existencial; um olhar espiritual; e um olhar soteriológico.
Meu irmão, como você, eu não quero e não posso fechar meus olhos para a crua realidade existencial em que vivem tantas irmãs e irmãos meus na humanidade. Meus olhos veem o sofrimento dos pobres, a carência que sentem, as desigualdades sociais tão explícitas em nosso meio. O grito que se origina no escândalo da pobreza deve encontrar em mim um ouvido atento e diligente. Como homem de fé, também quero ser capaz de enxergar aí a persistência de uma experiência da cruz e do sofrimento de Cristo em nossa história. São as Escrituras que destacam a condição frágil e fraca dos pobres – levando-me a reconhecer a fragilidade e a fraqueza de minha própria condição humana – e o compromisso de Deus com os destituídos. Com a teologia e a Igreja latino-americana, espero responder a esse apelo gritante, por um lado, por meio de uma verdadeira caridade pessoal e coletiva e, por outro, pelo compromisso pessoal e comunitário com a construção de sociedades mais justas, onde todas as pessoas se sintam amadas e capazes de amar. Ao entrar com você, querido Gustavo, no movimento do Deus que quer dar tudo, porque Ele é Aquele que Se dá, poderei ser associado à potência-toda-entregue do Amor do Pai.
Quero, também, que esta proximidade com a realidade dos empobrecidos, sem dissimulações e negações, geste em mim um olhar espiritual como o seu, capaz de admirar o modo como tantos empobrecidos acolhem um dom, a fé de tantos deles, mesmo em meio ao sofrimento. Pouco a pouco, desejo ser alcançado pela força da humildade, enraizada numa teimosa confiança filial. Que esse olhar me conduza a uma compreensão mais profunda e viva da experiência da confiança e da obediência de Cristo em meio ao drama da cruz. Não posso esquecer que as Escrituras destacam a condição humilde dos pobres – o que exige que eu reconheça meu justo lugar diante de Deus e dos outros – e insistem em proclamar que Deus quer dar sua graça aos humildes. Com a teologia e a Igreja latino-americana, espero responder a esse apelo silencioso, por um lado, pelo cultivo de uma mística da kenosis – o abaixamento e esvaziamento do Deus-conosco – e, por outro, pela solidariedade com as proféticas comunidades de inserção entre os pobres, que encarnam o desejo de Deus de compartilhar a vida com eles. Ao entrar com você, querido Gustavo, no movimento do Deus que aceita receber tudo para, por sua vez, dar tudo de graça, poderei ser associado à potência-toda-hospitaleira do Amor do Filho.
Desejo que esses dois olhares me levem a um terceiro, o olhar soteriológico, como o seu, capaz de se alegrar, mesmo em meio às incompreensões e perseguições, com a alegria interior e o senso de solidariedade de tantos pobres. A alegria que se origina no senso de comunhão é um discreto sinal da presença viva e atuante do Crucificado-Ressuscitado entre nós, em nossas Galileias, nas periferias de nossa história. As Escrituras destacam a condição de espera pela salvação, uma característica dos anawin, os pobres de Deus – o que me leva a reconhecer que eu não posso dar a mim mesmo a plenitude que tanto almejo – e o compromisso de Deus com a salvação de todos, de toda a criação. Com a teologia e a Igreja latino-americana, espero responder a esse apelo íntimo, por um lado, por meio de uma contínua conversão do olhar para acolher a surpreendente novidade de Deus e, por outro, colaborando com a formação de comunidades que reúnam as pessoas em sua dignidade e diversidade relacional, tornando-se assim sinais visíveis de salvação. Ao entrar com você, querido Gustavo, no movimento do Deus que mantém o vínculo entre tudo e todos, poderei ser associado à potência-toda-livre-e-libertadora do Espírito de Santidade.
Esta breve partilha é tão pouco diante da mensagem de sua vida, querido e livre Gustavo! Mas aceite estas simples palavras como a homenagem de um irmão mais novo, que olha com orgulho, admiração e reverência para a vida de um discípulo-precursor, que aprendeu a alegria de ser “amigo do Noivo” e “conviva do Banquete”, escolhendo o belo lugar do servidor que diminui para que o Outro cresça.
Francys Silvestrini Adão SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
Foto: Ministério da Educação do Peru / Divulgação