Sinivaldo S. Tavares, OFM
A atitude que Jesus assume para com a própria morte se coloca em profunda coerência com a atitude assumida por ele durante toda a vida: entrega generosa e serviço desinteressado como expressões cabais de sua extrema fidelidade ao Pai e de sua incondicional solidariedade para com os seres humanos e as criaturas todas. Jesus assume, portanto, a morte como uma espécie de coroamento de sua existência. Para se referir à singularidade da existência histórica de Jesus, cunharam-se expressões como: “pró-existência” (D. Bonhöffer) e “existência sacrificial” (L. Boff). Pois, de fato, ao coroar seu inteiro percurso histórico, esta atitude de entrega desvela no melhor dos modos o sentido último de sua própria existência.
Convém lembrar, aqui, as narrações da última ceia que, em suas distintas formulações (cf. 1Cor 11,23-27; Lc 22,14-20 / Mc 14,22-25; Mt 26,26-29), constituem uma interpretação cabal do sentido oblativo oferecido por Jesus à própria morte. Tais narrativas testemunham uma coerência profunda entre a morte de Jesus e sua pregação. A proposição grega hyper, traduzida por para, em favor de, exprime a atitude de entrega, sentido último oferecido por Jesus à própria morte. Assim, a morte de Jesus desvela de modo inequívoco a singularidade de sua vida como existência sacrificial. A morte de Jesus emerge, então, como o cumprimento de sua peculiar existência, vivida na mais total dedicação ao Pai e no amor desinteressado aos seres humanos, seus irmãos.
Isso posto, a corporeidade das pessoas humanas e das demais criaturas se converte em local e momento privilegiados de encontro com Deus, porque expressão inconcussa, inequívoca, do amor gratuitamente oferecido e livremente correspondido. Na perspectiva cristã, portanto, o material é sempre símbolo, sacramento, do espiritual. Por essa razão, querer separá-los, negando a intrínseca reciprocidade que existe entre eles é, no fundo, empobrecer a ambos, ignorando, portanto, esta realidade profundamente cristã.
Por tudo isso, a revelação cristã pressupõe empenho em aprofundar a experiência humana na sua complexidade, vale dizer, indagando acerca de suas distintas dimensões constitutivas e de suas legítimas extensões à materialidade da história e do universo. Neste sentido, a perspectiva da revelação não fecha, mas abre o leque às várias abordagens do ser humano e sua história e da natureza, oriundas das ciências humanas, das ciências sociais, da cosmologia, da física, da biologia, etc. Pois, em Jesus Cristo, tudo o que é autenticamente humano, histórico e cósmico foi assunto, sem ser diminuído ou negado, e elevado a uma altíssima dignidade.
Não ignoramos que hoje a revelação cristã se encontra sob fortes suspeitas. E a razão reside no fato de ela ser interpretada de maneira preconceituosa: como uma autoridade heterônoma e, portanto, extrínseca e alheia à razão humana emancipada, tão ciosa de sua autonomia. Se assim o fosse, a revelação se ocuparia apenas de Deus e das questões especificamente religiosas. E estas, por sua vez, sempre mais relegadas à esfera do privado e do particular.
Todavia, a partir de uma visão mais profunda da Revelação cristã, percebemos que ela revela e fomenta experiências que concernem ao que de mais humano existe em cada ser humano e em todos os seres humanos, ao que de mais histórico se aninha nos sulcos da história da humanidade e ao que de mais material e orgânico permeia a complexidade da criação. A Revelação não constitui, portanto, um complexo de verdades heterônomas, mas, ao contrário, ela se dá no bojo mesmo de um processo que, provocando o ser humano a um conhecimento cada vez mais profundo de si, estimula-o a engajar-se sempre mais no processo de sua auto-realização enquanto pessoa humana integral. Da mesma forma, ela se dá como um movimento vital que, provocando as criaturas todas e a própria matéria a perscrutarem sua própria interioridade, deixa transparecer seu transfundo genuinamente espiritual. Pois como dizia Teilhard de Chardin: “Espírito e matéria são duas dimensões de um mesmo fenômeno”.
Nesse sentido, a revelação cristã não se apresenta como uma autoridade extrínseca e, portanto, alheia à vida e à história humanas, mas, ao contrário, se revela em seu caráter intrinsecamente maiêutico. A Revelação cristã se dá, em virtude de sua própria e intrínseca constituição, como uma autêntica “maiêutica histórica” (A. Torres Queiruga): um dar à luz o mistério que habita a profundidade de cada um e de todos nós.
Ousaríamos expandir esta concepção para falar da Revelação bíblica como uma “maiêutica cósmica”: um dar à luz o mistério que habita a interioridade de cada criatura e que permeia os meandros sutis da criação em sua peculiar complexidade. Não seria essa a intenção dos textos bíblicos ao professarem que também o universo está destinado à salvação? A metáfora dos novos céus e da nova terra, expressão da transfiguração do inteiro cosmos, não encarnaria essa utopia da plenificação cósmica prometida e esperada para os tempos derradeiros e definitivos? Não se trata, em definitiva, de naturalizar a vida divina nem de divinizar a vida natural, mas, sim, de recuperar o diferencial discriminante da mais genuína profissão de fé cristã que contempla na complexidade da criação a transparência do Deus trino e uno.
Para exprimir essa convicção profundamente cristã de que nada do que é autenticamente humano e histórico é alheio ou indiferente à Revelação cristã, Schillebeeckx, parafraseando uma fórmula clássica da tradição, dizia “fora da história não há salvação”. Parafraseando o teólogo dominicano, ousaríamos dizer que, dada a intrínseca dimensão cósmica da revelação cristã, “fora da carne não há salvação”, uma vez que a carne é aquilo que une todos os seres vivos, queridos pelo Criador.
Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM é professor e pesquisador no departamento de teologia da FAJE
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