Luiz Sureki, SJ
Contos e fábulas exercem grande fascinação sobre pessoas de todas as idades, culturas e épocas. Essas narrativas, muitas vezes curtas e repletas de simbolismo, têm o poder de transmitir ensinamentos, valores e reflexões de maneira simples e envolvente.
Os contos, muitas vezes enraizados no folclore e na tradição oral, exploram desde lições morais até questões existenciais, como o amor, a morte, o medo e a superação, a mentira e a verdade.
Certa vez um rei sonhou que havia perdido todos os dentes.
Ele acordou assustado e mandou chamar um sábio para que interpretasse o sonho.
– Muito ruim, Senhor! Exclamou o sábio. Cada dente caído representa a perda de um parente de Vossa Majestade!
– Mas que insolente, gritou o rei. Como se atreve a dizer tal coisa?
Então, o rei chamou os guardas e mandou que lhe dessem cem chicotadas.
Aí resolveu chamar outro sábio para interpretar o mesmo sonho; e este lhe disse:
– Senhor, uma grande felicidade vos está reservada! O sonho indica que ireis viver mais que todos os vossos parentes!
A fisionomia do rei se iluminou e ele mandou dar cem moedas de ouro ao sábio.
Quando este saía do palácio um cortesão perguntou ao sábio:
– Como é possível? A interpretação que você fez foi a mesma do seu colega. No entanto, ele levou chicotadas e você, moedas de ouro!
– Lembre-se sempre… respondeu o sábio, tudo depende da maneira de dizer as coisas!
Este conto pode ser interpretado filosoficamente sob várias perspectivas, mas, em essência, ele trata do poder da linguagem na construção da realidade (1), da subjetividade da percepção ou da relatividade da verdade (2), da prudência na comunicação (3) e até da diferença entre sabedoria e conhecimento (4).
- A linguagem e a construção da realidade
O primeiro sábio apresenta os fatos de maneira direta e objetiva, mas sua forma de comunicação gera revolta no rei. O segundo sábio, embora diga essencialmente a mesma coisa, utiliza uma linguagem positiva e otimista, o que leva a uma recepção favorável. Isso ilustra o poder da retórica e da escolha das palavras na construção da realidade percebida. Como dizia Wittgenstein, “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo” – a forma como expressamos algo pode moldar como os outros compreendem e reagem à realidade.
- A subjetividade da percepção ou a relatividade da verdade
A interpretação dos fatos não é neutra; depende da perspectiva do observador. O rei reage de maneira diferente às mesmas informações, dependendo da forma como são apresentadas. Isso remete à ideia fenomenológica de que a verdade não é apenas um dado bruto, fixo e objetivo, mas algo que se manifesta dentro de uma estrutura interpretativa; ela é filtrada pela lente subjetiva de quem a interpreta. A mesma verdade pareceu tanto uma maldição como uma benção. Essa ambiguidade nos convida a questionar nossas “certezas absolutas” e reconhecer que as verdades são relativas no sentido de que são determinadas e aceitas como tais na relação com outras pessoas. A verdade não é nem somente subjetiva nem somente objetiva, mas essencialmente intersubjetiva. Ela se diz na linguagem, e a linguagem é um fenômeno social.
- A prudência e a ética da comunicação
O segundo sábio demonstra sabedoria prática (phronesis) ao compreender a psicologia do rei e ajustar sua fala para ser eficaz. Aristóteles defendia que a virtude está no equilíbrio, e o segundo sábio encontra esse equilíbrio entre a verdade e a diplomacia. Ele não mente, mas molda a verdade para ser aceita. Isso também remete à reflexão kantiana sobre a intenção ética na comunicação: a verdade deve ser dita, mas com sensibilidade para não gerar danos desnecessários.
- Conhecimento X Sabedoria
O primeiro sábio possui conhecimento, mas lhe falta sabedoria para transmiti-lo de forma adequada. O segundo sábio, por outro lado, possui não apenas conhecimento, mas também inteligência emocional e compreensão do contexto, tornando-se mais eficaz. Isso nos lembra da distinção feita por Platão e Sócrates entre a mera posse de informações e o uso sábio do conhecimento na vida prática.
A reflexão sobre o papel da linguagem na experiência humana, a subjetividade das interpretações e a importância da prudência na comunicação ganhou significativa relevância na filosofia contemporânea. A chamada “virada linguística” (linguistic turm) na filosofia deslocou o foco das investigações filosóficas para a análise da linguagem como meio central para compreender questões sobre realidade, conhecimento, significado e existência. Reconhecendo que grande parte dos problemas filosóficos surge de confusões ou ambiguidades no uso da linguagem, pensadores como G. Frege, L. Wittgenstein, B. Russell, R. Carnap, W. Quine, entre outros, examinaram como a estrutura e o funcionamento da linguagem moldam nossa concepção do mundo.
Em suma: o conto nos ensina que não basta dizer a verdade; é preciso saber como dizê-la. Se “tudo depende da maneira de dizer as coisas”, segue-se que a comunicação é uma arte, que dizer a verdade é uma arte, e que a arte de dizer a verdade distingue a sabedoria do conhecimento, e o sábio do bem-informado!
Luiz Sureki, SJ é professor e pesquisador no departamento de Filosofia da FAJE
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