Geraldo Luiz De Mori, SJ
“Foi Ele quem deu a ciência aos seres humanos, para ser glorificado nas obras prodigiosas dele” (Eclo 38,6).
No dia 28/01/2025, o Dicastério da Doutrina da Fé e o Dicastério da Cultura e Educação publicaram o texto Antiqua et Nova. Nota sobre a relação entre a inteligência artificial e a inteligência humana. O enorme volume de informação que vai se acumulando no continente digital nem sempre permite que as pessoas se deem conta de coisas importantes que são produzidas e publicadas sobre os temas mais diversos do saber humano, também os do campo religioso. No caso específico da Nota dos dois Dicastérios do Vaticano, sua pouca difusão impede não só os católicos de conhecerem as orientações da Igreja sobre um tema crucial da contemporaneidade, mas também outras pessoas que buscam referências éticas para pensarem a inteligência artificial (IA). Além da pouca difusão desse texto nas principais mídias de notícias do país, sua não tradução à língua portuguesa é outro fator que dificulta seu acesso ao grande público, não permitindo, por exemplo, que os atuais debates ao redor do controle de perfis e de plataformas digitais, em trâmite no Supremo Tribunal Federal, sejam melhor avaliados.
A discussão sobre a IA ganhou visibilidade na grande mídia recente a partir da divulgação, no final de 2022, da criação do ChatGPT. Muitos recursos da IA já eram utilizados em computadores, celulares e aparelhos de todos os tipos, além de auxiliar na organização do mundo do trabalho, das empresas, de instituições governamentais, educacionais, de saúde, de segurança, entre outras. A divulgação dessa nova ferramenta e os investimentos bilionários das Big Techs levantaram, porém, novas questões, num debate inaugurado em 1956, quando John MacCarthy organizou um congresso na Universidade de Dartmouth, USA, para afrontar o problema da “Inteligência Artificial”.
No mundo eclesial, as tecnologias da informação já eram utilizadas para fins de evangelização desde que se tornaram acessíveis e disponíveis, ganhando, porém, maior importância durante a pandemia de Covid-19, por conta do distanciamento social, que obrigou a maioria das pessoas a se comunicarem, sobretudo, através das mídias digitais. Não por acaso, foi no contexto pós-pandêmico que foi lançado o ChatGPT, visto, por um lado, como um grande avanço, mas, por outro, como uma ameaça. Curiosamente, em 2019, num seminário sobre o bem comum na era digital, promovido pelo Pontifício Conselho para a Cultua e pelo Dicastério do Desenvolvimento Humano Integral, o Papa Francisco havia feito um discurso no qual mostrava que o campo da tecnologia, especialmente da IA, tinha implicações em todos os âmbitos da atividade humana. Ele apontava então para as “vantagens e riscos” associados ao seu uso nos debates sobre as grandes questões sociais. Em 2020, na Plenária da Pontifícia Academia para a Vida, ele voltou a falar sobre as novas tecnologias e a necessidade de uma “algor-ética, necessária para que os princípios se inscrevessem concretamente nas tecnologias digitais. Em 2024, na Mensagem para a 57ª Jornada Mundial da Paz, o Pontífice apresentou uma reflexão articulando IA e Paz. No mesmo ano, por ocasião da 58ª Jornada Mundial das Comunicações Sociais, ele propôs uma mensagem sobre a IA articulada com a “sabedoria do coração para uma comunicação plenamente humana”. Por fim, ainda em 2024, na Sessão do G7 sobre IA, ele propôs um discurso sobre o tema.
A Nota dos Dicastérios da Doutrina da Fé e da Cultura e Educação está organizada em quatro partes, com uma Introdução e uma Conclusão. Na Introdução já aparecem os dois eixos organizadores do texto: o das “implicações antropológicas e éticas” da IA. Trata-se, diz o texto, não só de “mitigar os riscos e prevenir os danos, mas também de garantir que suas aplicações se dirijam a promover o progresso humano e o bem comum” (AN, 4), contribuindo positivamente para um discernimento sobre a IA (AN 5).
O 1º Capítulo, “O que é a Inteligência Artificial?”, mostra as duas definições de IA: a “débil”, destinada a “desenvolver tarefas limitadas e específicas, como traduzir de uma língua a outra, prever a evolução de uma tempestade, classificar imagens, oferecer respostas a perguntas, gerar imagens a pedido do usuário” (AN 8); a “Geral”, vista como um “único sistema, o qual, operando em todos os âmbitos cognifivos, seria capaz de realizar qualquer tarefa ao alcance da mente humana”, podendo alcançar “o estado de “superinteligência”, ultrapassando a capacidade intelectual humana, ou contribuindo para a “superlongevidade”, graças aos progressos das biotecnologias” (AN 9). A Nota afirma, porém, que a IA tem capacidades “sofisticadas para realizar tarefas, mas “não para pensar”, e isso é decisivo, pois o modo como se define a “inteligência” determina a compreensão da relação entre o que é pensamento humano e essa tecnologia (AN 12).
O 2º Capítulo, “A inteligência na tradição filosófica e teológica”, está organizado em sete eixos, que correspondem à complexidade do que se entende por inteligência: (1) racionalidade, que distingue inteligência e razão, a primeira sendo a intuição da verdade e a segunda o processo discursivo e analítico, que conduz ao juízo; (2) Encarnação, que mostra que a inteligência humana é sempre encarnada, sendo indissociável do corpo; (3) relacionalidade, que recorda a dimensão relacional como central para se entender o ser humano; (4) relação com a verdade, que recorda o desejo da verdade que move a inteligência humana; (5) custódia do mundo, que lembra o papel de cuidado do mundo próprio ao ser humano; (6) uma compreensão integral da inteligência humana, que mostra que a inteligência não só capta fatos e realiza tarefas, mas se abre às questões últimas da existência; (7) limites da IA, recorda que a IA realiza tarefas, alcança objetivos ou toma decisões baseada em dados e na lógica computacional.
O 3º Capítulo, “O papel da ética para guiar o desenvolvimento e o uso da IA”, aponta os princípios éticos a partir dos quais valorizar a IA, o principal deles sendo o da dignidade humana. Este princípio é visto como o critério chave para avaliar as tecnologias emergentes, que revelam sua positividade ética na medida em que contribuem para manifestar essa dignidade e incrementar sua expressão em todos os níveis da vida humana, incluída a esfera social e econômica (AN 42). O texto aborda ainda o tema da responsabilidade e da subsidiariedade, dois princípios basilares da DSI.
No 4º Capítulo, “Questões Específicas”, são indicados dez âmbitos nos quais mais se sente o impacto da IA: (1) IA e sociedade, (2) IA e relações humanas, (3) IA, economia e trabalho, (4) IA e sanidade, (5) IA e educação, (6) IA, desinformação, deepfake e abusos, (7) IA, privacidade e controle, (8) IA e proteção da casa comum, (9) IA e guerra, (10) IA e relação da humanidade com Deus. Cada um desses âmbitos é impactado pela IA, não só negativamente, mas também positivamente. O texto busca manter um equilíbrio entre essas avaliações, apresentando os critérios éticos e teológicos para discernir e avaliar eticamente o recurso à IA, em benefício do mundo e da humanidade.
A Nota dos Dicastérios da Doutrina da Fé e da Cultura e Educação intervem num momento em que os grandes representantes das empresas que mais investem em IA, como os “senhores” das Big Techs, buscam tornar a “verdade” deles a “única” verdade, não tendo nenhum critério ético e pouca referência humanista, embora se digam defensores dos valores “ocidentais”. No Brasil, as tentativas de “regular” os conteúdos disseminados através da IA têm recebido fortes críticas de setores importantes da mídia e da elite nacional, num claro alinhamento com as tendências dos “senhores” das Big Techs. Oxalá o conhecimento de Antiqua et Nova, sobretudo por quem se diz herdeiro da “herança cristã”, possa trazer novas luzes para um discernimento sobre o uso da IA.
Geraldo Luiz De Mori, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
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