Marília Murta de Almeida
Os versos de Castro Alves em seu poema Tragédia no mar (O navio negreiro) sempre me transportaram para uma realidade em que a dor beira o insuportável, por escancarar a iniquidade sobre a qual está inscrita a história do nosso país. Entretanto, não é só isso. Soma-se à iniquidade explícita a beleza cortante dos versos do poeta. Beleza e dor pungentes que tocam o exato mesmo lugar existencial, um ponto no meio do peito em que a veia da vida pulsa a ritmo máximo. A sensibilidade se abre em pranto por beleza e dor. A belíssima imagem, que abre o poema, do navio visto pequenino, da lonjura em que mar e céu se juntam, imediatamente gera a sensibilização capaz de lançar o leitor na dor dilacerante, quando o olhar do poeta o leva para o interior do navio:
Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais … inda mais… não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí… Que quadro d’amarguras!
É canto funeral! … Que tétricas figuras! …
Que cena infame e vil… Meu Deus! Meu Deus! Que horror!
A águia que olhava o navio da distância correspondente à imensidão do mar e do céu desce ao navio. A imensidão agora é a da indignação frente ao que se vê. Pessoas amontoadas como coisas em meio à sujeira dos corpos na escuridão do porão. Os versos seguintes intensificam a descrição e a revolta do poeta e do leitor. Este texto, que parecia ser a descrição mais explícita e sensível dessa realidade infame, que não nos deixa esquecê-la e abre nossos olhos para as iniquidades que ainda são perpetradas contra o povo brasileiro, encontrou nas nossas letras um desdobramento arrebatador.
Travando o desafio de percorrer as novecentas páginas do romance histórico Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, caí mais uma vez no insuportável da realidade. A protagonista Kehinde, que narra sua história em primeira pessoa, foi trazida de Uidá, no atual Benim, ao Brasil em um navio negreiro aos sete anos de idade, no início do século XIX. Na travessia, viu sua irmã gêmea e sua avó perderem a vida. Chegou nas terras brasileiras sozinha para ser vendida como escrava.
A despeito de todos os horrores que a instituição da escravidão – que perdurou por mais de trezentos anos em nossa curta história como país e que segue viva em suas consequências que ainda nos pertencem e urgem por combate e ações compensatórias e curativas – contém, me detenho aqui no ponto nevrálgico da travessia do mar. Escutei há algum tempo a afirmação – que me soou inaudita, ainda que óbvia – de que toda pessoa negra brasileira tem um antepassado que chegou a nossas terras em um navio negreiro. Portanto, se a história desses navios faz parte de nossa memória coletiva, faz parte também da memória familiar de todas as pessoas negras brasileiras. O relato de Ana Maria Gonçalves é tão pungente quanto os versos de Castro Alves, com o agravante dos detalhes percebidos e relatados na voz da personagem criança. Copio um trecho, escolhido entre tantos outros, para dar o tom da narrativa:
O Benevides tinha se matado, e muita gente disse que ele tinha feito o certo, que antes virar carneiro de bicho do mar, pois provavelmente seria lançado ao mar, do que carneiro de branco no estrangeiro. Ninguém sabia o que fazer, alguns gritaram para ver se os guardas apareciam, mas nada aconteceu. O calor e o cheiro forte de suor e de excrementos misturado ao cheiro da morte, não ainda o do corpo morto, mas da morte em si, faziam tudo ficar mais quieto, como se o ar ganhasse peso, fazendo pressão sobre nós. Já estávamos todos muito fracos, pois era o início do quarto dia sem comer.
A repetição de cenas como essa, a fome, a sede, a saudade da luz, a resignação, os dias intermináveis, dão o tom da travessia. A morte da avó e da irmã intensificam o quadro que já é repugnante. A banalidade dos fatos, no sentido de que Kehinde é só uma menina entre tantas outras pessoas, todas elas arrancadas de sua vida comum sem qualquer justificativa possível, também nos alerta para a quase impossibilidade de lidar a contento com essa realidade. As sensações e o frágil pensamento encaminham rapidamente no sentido da saída e da solução.
E agora, o que fazemos com isso? A história seguiu, somos um país livre, que deixemos para trás a dor. Esse parece ser o movimento mais comum e o mais possível de ser feito por nós, filhos desta terra. Mas me sinto presa, como num buraco do qual precisaria ser resgatada. Numa síntese talvez simplista demais, uma pergunta insiste: o que fazer da felicidade na consciência de uma dor assim?
Apelo ao próprio texto de Ana Maria Gonçalves para tentar responder. Numa noite em que os que estavam no porão foram levados à parte de cima do navio para que limpassem o ambiente infestado por agentes de uma doença infecciosa, Kehinde nos diz assim:
A noite foi muito fria e tivemos que passá-la ao relento, nus, todos o mais junto possível, porque tinham jogado remédio no porão e precisaríamos esperar até o dia seguinte para podermos descer. Foi uma noite longa, mas a melhor de todas. Além de água e comida, distribuíram cachaça, e todos beberam à vontade. Os guardas não se importaram quando algumas pessoas se puseram a cantar e outras vozes foram se juntando. Logo, quase todos estavam cantando e dançando, sem se lembrar da nudez, da fraqueza, do frio ou do destino como carneiros.
Ou, talvez, apenas preferissem virar carneiros felizes. Eu também tive vontade de cantar e dançar, mas não tive coragem, na frente da minha avó e da Taiwo.
Na situação infame que vivia, vendo a avó e a irmã já doentes, Kehinde quis dançar. A felicidade parece ser um dom que tem o poder de nos invadir em qualquer circunstância. Sendo capaz de sentir o alívio momentâneo daquela noite de alguma liberdade, a criança se abriu à vida, em meio à tragédia de seu destino. Não dançou, por respeito à avó e à irmã que amava e que não suportariam muito tempo mais. Mas sentiu em si o chamado da vida.
É assim que talvez possamos fruir a fruta da vida, em qualquer circunstância: aceitando-a como dom. E há de ser nesse movimento interno que a beleza e a dor se entrelaçam no meio do peito e fazem da vida humana essa sensibilização que beira o insuportável.
Marília Murta de Almeida é professora e pesquisadora no departamento de Filosofia da FAJE
21/08/25

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