“Não cobiçarás, amarás!”

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Moisés Nonato Quintela Ponte, SJ

Este é o título que o padre Johan Konings pensou para a publicação de um livro sobre os mandamentos. Em 2020, compartilhou esse projeto comigo, propondo uma publicação conjunta sobre o decálogo, a ser escrita desde a perspectiva bíblica e aquela da ética teológica. Seu escopo não era o de realizarmos um estudo bíblico-teológico sobre os mandamentos, circunscrito ao âmbito acadêmico. Antes sua preocupação, qual princípio e fundamento que orientou toda sua vida intelectual e docente, era pastoral: a de ajudar na formação de suas irmãs e irmãos de fé.

Preocupava-se, como me confiou em um rascunho de suas primeiras ideias, com a deficiente formação catequética das pessoas, que reduz os mandamentos a “um catálogo, uma check list de todos os pecados possíveis e impossíveis, visíveis e invisíveis”. Fazendo eco de seu colega e amigo frei Bernardino Leers, outro grande missionário que soube mergulhar na cultura do povo brasileiro a partir do interior de Minas Gerais, Konings queria, com essa publicação, afrontar o recrudescimento de uma “pecadofobia”, que toma o lugar do próprio Evangelho nos discursos cada vez mais disseminados de novos gurus e influenciadores católicos.

Uma pecadofobia, no entanto, seletiva, como o reconhece o próprio frei Bernardino Leers, ao constatar a ocorrência de uma ambiguidade fundamental na vida de tantos católicos e cristãos em geral: a de uma “amoralidade nos negócios e escrupulosidade em maus pensamentos sexuais e distrações nas orações”. Reconhece-o também Konings em seu rascunho: “As estratégias para expulsar pequenos proprietários de seus terrenos, a grilagem, a especulação fundiária criminosa etc. não são matéria da confissão pascal…”.

Daí se origina a preferência pelo título “não cobiçarás”. Afinal, nas palavras do padre Konings: “o termo ‘cobiçar’ não remete ao sexto mandamento, como muitos talvez pensem, pois o texto literal do sexto mandamento não fala em ‘cobiçar’, mas em ‘cometer adultério’, o que é outra coisa… ‘Cobiçar’ diz respeito ao nono mandamento, convidando a uma reflexão bem fundamental, cujo alcance atinge todo campo da ética”.

Trata-se de resgatar os mandamentos sob o pano de fundo de uma Aliança de Amor entre Deus e seu povo, dizendo respeito a vida em sua inteireza (corpo e alma; sujeito e comunidade…), uma vez que o Amor é a força vital (dynamis) que nos põe em movimento, impelindo-nos a amar com todo o coração, com toda a alma, com toda a força e toda a vontade. Uma vida sem amor, sem paixão e compaixão, pouco a pouco vai se esvaindo em preocupações não fundamentais, como as do jovem rico do Evangelho de Mateus: obcecado com tantos detalhes, olvidava o que é fundamental.

“Amarás!” Este é o mandamento fundamental que se diz e entrediz sob o véu negativo dos interditos dos mandamentos. Neles ressoa o imperativo primeiro do Amor, que só nos é possível, pois fundado em um dom e em uma graça prevenientes (“porque ele nos amou primeiro”, 1Jo 4,19), que se dizem narrativamente no evento fundante da antiga páscoa, oferecendo-nos a chave de leitura de todo o decálogo: “Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fiz sair da terra do Egito, da casa da escravidão” (Ex 20,2).

Os mandamentos estão a serviço de uma pedagogia da liberdade libertada, vocacionada a permanecer livre: “Foi para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5,1). Ao voltarem ao seu fundamento, os mandamentos recuperam toda a força libertadora e vivificadora que se ofusca na obsessão da lei e do medo de pecar, a produzir novos fardos difíceis de suportar (Mt 23,4). Os quais mais fragmentam e infantilizam os fiéis do que os conduzem àquele princípio que animou o Concílio Vaticano II a renovar as disciplinas teológicas “por meio de um contato mais vivo com o mistério de Cristo e a história de salvação […] [no intuito de se assim] revelar a grandeza da vocação dos fiéis em Cristo, e a sua obrigação de dar frutos na caridade para vida do mundo” (Optatam totius 16).

Apaixonado pelas Escrituras e fiel ao espírito de renovação do Vaticano II, Konings certamente me permitiria recordar nessa publicação, que afetuosamente permaneceu in pectore, o caso curioso do escrupuloso Hermas, a quem é atribuída a obra o Pastor, do segundo século da era cristã. À época, o sacramento da penitência era concedido apenas uma vez na vida. O medo de pecar e de não ter outra ocasião de reconciliação levou Hermas a uma descoberta inesperada. Do medo dos pecados passou à consideração da existência do que chama de “grande pecado”: o abster-se do bem, de viver o Amor.

Com efeito, ao perguntar ao Senhor do que deveria se abster e do que não, numa espécie de moral interesseira a inquirir os limites do que lhe era permitido, Hermas recebe como resposta do anjo do Senhor: “Escuta [Shemah!]. Abstém-te do mal e não o pratiques. Não te abstenhas do bem, mas pratica-o. Com efeito, se te abstiveres de praticar o bem, cometerás grande pecado; por outro lado, se te abstiveres de praticar o mal, praticarás um grande ato de justiça. Abstém-te, portanto, de todo mal e pratica o bem” (n. 38). Do acento negativo naquilo que se deve evitar, Hermas, sem desconsiderar o mal e injustiça a serem evitados, passa ao enfoque positivo do bem de que não se deve abster.

O projeto do padre Konings, mestre querido, era o de nos ajudar a atravessar os umbrais de uma moral escrupulosa de um Hermas rumo a um caminho de liberdade, a que a Lei conduz como pedagoga. Seu intuito – deixando que suas palavras encerrem nossa homenagem – não era outro senão o de “colocar o amor como chave de leitura para os mandamentos”. Pois “o amor é positivo, criativo, inspira comportamentos… O amor é a plenitude da lei”.

Moisés Nonato Quintela Ponte, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

Foto: Leonardo de Queiroz Sancho

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