Francys Silvestrini Adão, SJ
Nada do que acontece no mundo deveria deixar indiferente uma pessoa de fé, ainda menos as mudanças de grande porte que anunciam uma reconfiguração dos valores e anseios de uma civilização. O primeiro passo a ser dado, a fim de evitar um entusiasmo ingênuo ou uma condenação apressada, deveria ser a tentativa de conhecer um pouco mais a complexidade do fenômeno que estamos vivendo, do qual todos fazemos parte. Tendo ganhado destaque entre os estudos deste tempo de transição civilizatória vivido pelo Ocidente, o livro “O ponto de mutação”, do físico austríaco Fritjof Capra, ajuda-nos a pensar nosso tempo, pois apresenta uma descrição minuciosa da situação de sua época (começo dos anos 80), tornada ainda mais evidente em nossos dias (mais de 40 anos após o lançamento do livro). Naquele momento, Capra identificava um tempo de crise, de transição, de mudança de paradigmas e, consequentemente, de novas oportunidades. Basta olhar à nossa volta para confirmar a pertinência e a atualidade de grande parte do quadro que ele descreve.
Uma primeira análise se dá em um nível mais subterrâneo, que condiciona nosso modo de pensar e de organizar nossa vida em sociedade. Capra, citando Sorokin, analisa a alternância vivida pelas civilizações entre três grandes sistemas de valores, denominados sensualista, ideacional e idealístico. Contudo, parece-me importante constatar um outro dado da realidade: além da alternância de valores dentro de uma única civilização, merece destaque também a alternância de grupos socioculturais com domínio sobre outros… Por isso, para compreender períodos de mudança de valores, é importante notar a relação entre os povos e culturas: de fato, se queremos enxergar com mais clareza a origem de uma racionalidade dominante num certo período histórico, devemos identificar o país ou o grupo de países que conquistaram o poder sobre os outros (sobretudo econômico) – com sua consequente influência – nesse mesmo período.
Assim, se a racionalidade predominante no Ocidente durante o período medieval era de tipo metafísico-especulativo, isso não está desvinculado do domínio econômico dos países da Europa continental (e de sua filosofia essencialista); se a racionalidade moderna era de tipo empírico-pragmático, isso não pode ser separado da ascensão econômica da Inglaterra e, em seguida, dos Estados Unidos (e de sua filosofia empirista e analítica); se a racionalidade contemporânea parece querer seguir um caminho mais intuitivo e harmônico, isso não pode ser desassociado da emergência econômica dos países asiáticos, notadamente da China (e de sua filosofia da busca do equilíbrio e da harmonia). Não é curioso que, já nos anos 80, Capra busque uma nova explicação da realidade justamente a partir do I Ching? Isso não é consequência, de algum modo, da expansão econômica da China nas últimas décadas? Não podemos escapar desta realidade: a potência econômica condiciona, em grande parte, a realidade cultural, pois isso possibilita que os valores culturais de um grupo dominante sejam disseminados em larga escala – graças aos meios de comunicação social e às estratégias comerciais, que criam uma nova “lógica”.
E a fé, que respostas ela pode (e deve!) dar em meio a tudo isso? Evitando os extremos de uma euforia acrítica e de um fechamento amedrontado, os discípulos de Cristo só têm um caminho: seguir o seu Mestre! Jesus encarnou-se e assumiu uma cultura concreta (ela mesma em mutação, graças ao domínio romano e helênico). E foi aí que ele viveu e tornou-se caminho de salvação. O contato de Jesus com as culturas é sempre um fator crítico: ele as impulsiona a não parar no meio do caminho, a ir até o fim… Por isso, podemos dizer, com toda a tradição eclesial: Jesus realiza e cumpre as culturas; mas faz isso por meio de um processo de conversão e de abertura sempre maiores!
Em diálogo com o texto de Capra, gostaria de expor alguns pontos de atenção e desafios para a fé em nosso tempo, refletindo sobre as interpelações mútuas entre a concepção de humanidade que está em gestação e aquela proposta pela fé cristã:
1) Questão antropológica número 1: o ser humano inteiro. A busca de equilíbrio entre a dimensão racional e a dimensão intuitiva do ser humano é uma questão a ser apoiada e sustentada pelas pessoas de fé. Há uma sede de integralidade, o que é saudável e salutar! Nos últimos tempos, nossos discursos e nossas celebrações têm alternado entre os extremos: ou são excessivamente racionais e frios, desprezando a dimensão afetiva da fé; ou excessivamente emocionais e agitados, abandonando a inteligência da fé. É a hora de recuperar a dimensão simbólica da celebração e do discurso cristãos. As Escrituras são cheias de imagens, de figuras, que falam – ao mesmo tempo – à inteligência, aos sentidos e aos afetos. A recuperação desta linguagem simbólica pode corresponder tanto a um anseio de nossos contemporâneos quanto a uma redescoberta de nossa própria tradição.
2) Questão antropológica número 2: diferenças em relação. Algo apontado por Capra e que se nota “a olho nu” em nossa sociedade e em nossas comunidades eclesiais é a ascensão do feminino. De fato, a grande maioria de nossas comunidades é frequentada – e muitas vezes dirigida – por mulheres. Porém, nossas instituições oficiais são majoritariamente masculinas: não digo somente masculinas em referência à ocupação dos postos-chave, mas também no que diz respeito à lógica da organização eclesial e da exposição oficial da fé. Há ainda uma grande hegemonia dos homens no seio da instituição eclesial. Isso se deve, possivelmente, à identificação exagerada com um modelo histórico, hiper-racionalizado e masculinizado. Com isso, corre-se o risco de absolutizar o relativo; e a consequência nefasta disso pode ser, por sua vez, a relativização do Absoluto. Não se trata aqui somente de questões práticas e eclesiológicas, mas acredito que este tema toque dimensões propriamente teológicas: a constatação do Criador no poema da Criação – “Não é bom que o homem esteja só…” – tem ainda muita coisa a nos ensinar.
3) Questão antropológica número 3: a comunidade necessária. Uma consequência social e eclesial desta passagem de um paradigma mais técnico e racionalista para um paradigma mais intuitivo e holístico é o enfraquecimento da pertença institucional. Não somente isso: nos grandes aglomerados urbanos, dá-se também a dificuldade de criar e de manter os vínculos sociais. Nas igrejas, nota-se o enfraquecimento do sentido de comunidade. Mas se o próprio nome “Igreja” revela sua missão de convocar, reunir, congregar a humanidade junto ao Cristo, a atual situação cultural nos interpela a dar respostas à altura deste desafio. Durante toda a sua história, uma das “especialidades” do cristianismo foi criar comunidades. Como fazê-lo neste contexto? Comunidades de base, comunidades de “tribos urbanas”, comunidades de condomínio? Há sede de relação e a fé cristã pode oferecer um caminho salutar. Mas devemos estar dispostos a reinventar nosso modo de ser comunidade, relativizando o modelo paroquial territorial, de tipo rural, que não corresponde completamente ao contexto das grandes cidades.
4) Questão antropológica número 4: o engajamento até o fim. Algo expresso no texto de Capra e que pode ser percebido à nossa volta é o desejo de reconciliação dos opostos, de harmonia, de equilíbrio. Justamente em nome deste desejo, Capra rejeita a análise marxista, julgada demasiado conflitiva e pouco apaziguadora. Não há dúvidas de que este desejo de paz e reconciliação seja bom! A proposta cristã também caminha neste sentido. Mas às custas de quê? Há um sério risco de alienação e de superficialidade no contato com as pessoas e, em especial, na análise dos fenômenos sociais. A busca do zen não coincide completamente com a acolhida do Reino! Jesus não buscou conflitos, mas quando se busca promover a vida – de todos –, estes parecem ser inevitáveis. Os cristãos seguem Jesus crucificado-ressuscitado, ainda hoje loucura e escândalo para muitos. Em nome da fé, não se pode aceitar a reconciliação e a paz de pequenos grupos em detrimento dos outros. Não pode haver, em nenhuma sociedade ou cultura, reconciliação e paz sem justiça e fraternidade. Sendo assim, a fé cristã tem sua palavra a dizer neste debate atual, impulsionando a sociedade a assumir até o fim seus desejos profundos de verdadeira harmonia.
Evidentemente, os pontos apresentados estão longe de abranger toda a complexidade que experimentam os homens e as mulheres de nosso tempo. Esses pontos, porém, parecem tocar às questões centrais da existência humana: a realização pessoal como ser integral; a complementaridade original entre homem e mulher; a abertura dos núcleos familiares a grupos de proximidade; e o reconhecimento da dignidade do outro que conduz ao compromisso social. O cristianismo pode entrar no debate, não como um mestre que já tem todas as respostas, mas como um parceiro que busca construir junto um caminho de vida. Assim como Jesus discutia com os fariseus, entrando no jogo das interpretações, a teologia cristã descobrirá sua função não trancada nos muros de uma igreja, mas em diálogo com o mundo em mutação, seus desejos nem sempre claros e seus desafios, que pertencem a todos nós!
Francys Silvestrini Adão SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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