Filosofia e Teologia: Um caso de reciprocidade

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Sinivaldo Silva Tavares, OFM

Existem, por certo, afinidades e diferenças entre Filosofia e Teologia. Ao explicitá-las, acreditamos criar condições para que filosofia e teologia dêem o máximo de si em termos de mútua provocação e, portanto, de potencialização recíproca.

Filosofia e teologia têm na Palavra seu mundo. Emergem a partir de uma peculiar relação com a Palavra experimentada como evento. Descobrem-se, portanto, como evento de Linguagem. Nossa civilização é comumente caracterizada como niilista. A relação com a linguagem, hoje, parece ter-se invertido. Encontramo-nos, não raramente, enredados em um monólogo funcionalista que confunde verdadeiro com eficiente. Comportamo-nos como se fôssemos criadores e manipuladores da linguagem. A experiência do sentido, no entanto, parece ter-nos escapado por entre os dedos. Tornamo-nos incapazes de acolher a Linguagem em sua expressão soberana: interpelação que nos provoca à escuta atenta e à generosa resposta. Filosofia e teologia vivem, nesse sentido, a partir de uma incumbência comum: rememorar dimensões intrínsecas à linguagem reconhecida como evento. E, por isso mesmo, filosofia e teologia se propõem como cultivadoras da semântica que aflora nos etmos das palavras e na sintaxe da linguagem.

A diferença principal entre ambas reside no modo peculiar de uma e de outra tutelar o sentido dos fenômenos que emergem no âmbito da linguagem. É o que chamamos de método. Filosofia e teologia elegem caminhos distintos. Encarnam distintas achegas à linguagem. A filosofia no ato mesmo de cuidar do sentido, o faz de maneira autônoma e crítica, indo à raiz das experiências e da linguagem. Problematiza os fenômenos, perscrutando seu sentido. Não se satisfaz com respostas imediatas e superficiais. Mantém com invejável vigilância atitudes de escuta atenta e de ousada indagação. Questiona seus próprios pressupostos e vive a partir dessa peculiar incumbência.

A teologia, por sua vez, mais se parece a uma intrincada trama que se enreda ao redor da Palavra revelada. Essa é seu positum, vale dizer, seu pressuposto inarredável. O sentido de toda palavra teológica tem início na escuta reverente e na generosa acolhida da Palavra soberana de Deus. Nesse sentido, à diferença da filosofia, a teologia não questiona seus próprios pressupostos; ao contrário, ela se reconhece como palavra segunda, provocada pela Palavra originária e primeira que é a Palavra inspiradora do Deus bíblico. Por essa razão, a teologia se nutre de uma incumbência que lhe é conferida: zelar pelo anúncio genuíno e pela correspondência fiel à Palavra revelada. E a realização dessa tarefa se dá na tutela do sentido perene encarnado nas palavras e eventos que o albergam. Em suma, a teologia se nutre da Palavra eficaz do Deus bíblico.

Essa Palavra originária e inspirada revela e fomenta, todavia, experiências que concernem ao que de mais humano existe em cada ser humano e em todos os seres humanos. De fato, A Palavra revelada não constitui um complexo de verdades heterônomas; ao contrário, ela nos alcança no bojo mesmo de um processo que, provocando o ser humano a um conhecimento cada vez mais profundo de si, estimula-o a engajar-se sempre mais no processo de sua autorrealização enquanto pessoa humana. Nesse sentido, a revelação bíblica não se confunde com uma autoridade exterior e, portanto, alheia e extrínseca à vida e à história humanas. Ela se distingue, no entanto, por seu caráter intrinsecamente maiêutico: um dar à luz o mistério que habita na interioridade de cada um e de todos nós e nos interstícios da história.

É nesse sentido precisamente que a filosofia pode se tornar companhia inseparável da teologia, vindo a tornar-se uma de suas interlocutoras privilegiadas. Se os fios com os quais a teologia tece seu discurso emergem das experiências de fé como correspondência à Palavra revelada, então nada mais legítimo do que oferecer razões dessas mesmas experiências. Pois toda experiência humana digna de ser reconhecida como tal é razoável, vale dizer, se diz mediante razões compreensíveis. Não se trata de avançar posições de uma pretensa subordinação recíproca entre ambas. Não se quer subordinar a filosofia à teologia como se chegou a propor na Cristandade medieval, tampouco se pretende subordinar a teologia à filosofia como propugnava o Iluminismo. Trata-se, na verdade, de uma relação interdisciplinar e, portanto, respeitosa entre ambas. Seria essa uma ocasião privilegiada para a razão se exercitar ao máximo justamente naquilo que lhe resulta mais próprio. Pois, afinal, a inteligência não constitui um fim em si mesmo, mas o meio para se atingir o verdadeiro fim ao qual o ser humano se descobre chamado. A razão habitada e movida pela fé pode se tornar caminho privilegiado para que o ser humano se abandone à escuta, na espera de algo que lhe possa ser dado.

Esse árduo processo mediante o qual a razão dá o melhor de si, potenciando ao máximo suas intrínsecas virtualidades, culmina na espera despretensiosa pelo dom da Revelação. Esse paradoxal movimento que toca as mais recônditas profundezas da razão, para poder assim deter-se às portas do Inefável, poderia ser descrito como autotranscendência do pensamento. Pensamento esse que se encontra, na verdade, atravessado por algo que o atrai e o seduz, mas que, em contrapartida, ele não consegue abraçar. Resta-lhe, contudo, a possibilidade de potencializar ao máximo sua disponibilidade em acolhê-lo generosamente. É o espaço da acolhida da Revelação como oferta gratuita e, portanto, inesperada. E se a razão humana não é capaz de alcançar, por si só, a revelação divina, todavia, ela pode acolhê-la quando essa lhe for oferecida como expressão de pura gratuidade.

Isso posto, somos de opinião que a relação entre Filosofia e Teologia se daria no interior de um horizonte onde se salvaguardaria, de um lado, a sadia pluralidade dos distintos saberes e, de outro, a relativa autonomia de cada saber em particular.

09/10/2025

Frei Sinivaldo Silva Tavares, OFM é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

Imagem: Shutterstock

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