Carlos Roberto Drawin
A noite estava bem fria no alto da montanha. Alguns homens lutavam contra o sono, esfregavam as mãos enregeladas e se esforçavam para que os cílios não colassem uns com os outros. Não podiam dormir ou, melhor, não deviam dormir, porque lhes era imprescindível a vigília, não o estar simplesmente acordado, mas o observar atentamente, de modo excepcionalmente concentrado, até que os seus olhos ficassem doloridos de cansaço. Eles tinham se perdido? Por acaso, eram bandidos ou fugitivos da polícia? Se não era esse o caso, por que não se recolhiam a um lugar mais aquecido e hospitaleiro, onde pudessem comer algo, tomar uma bebida quente? Bem, deixemos de lado esse estranho grupo de homens aparentemente celibatários. Mudemos o cenário para um ambiente menos inóspito. Duas mulheres, ambas surdas. Por serem mulheres e padecerem tal deficiência, o seu campo profissional era bastante limitado e a remuneração nada compensadora. Apesar disso dedicavam-se arduamente ao trabalho, embora fosse uma tarefa monótona e aparentemente irrelevante. Façamos mais um pequeno corte nessa narrativa. Agora não se trata mais de homens retirados na escuridão de uma noite gelada ou de duas mulheres modestas dedicadas no imperceptível das rotinas diárias. O foco passa para um jovem bem nascido, filho de família abastada que, desde criança, era possuído pelo fascínio obsedante por aparelhos óticos como microscópios e telescópios e, mais tarde, já adulto, apresentou sérios problemas mentais.
Esses fragmentos narrativos reúnem pessoas comuns com a especificidade de suas características e problemas: os jovens adultos obstinados em permanecer na montanha, as mulheres surdas e dedicadas ao seu trabalho rotineiro, uma criança, psiquicamente instável, porém tomada por uma obsessão que se manteve em sua vida adulta. Nada nesses fragmentos chama especial atenção, neles não há, aparentemente, nenhum gesto de ousadia, nada que não seja destinado ao esquecimento das vidas banais. Se retirarmos, porém, esses fragmentos da dispersão com que foram estrategicamente trazidos, se os reunirmos e os contextualizarmos o seu aparente anonimato se reveste de inesperada grandeza. O jovem rico e instável se chamava George Hale, nascido em meados do século XIX. Poderia ter sido apenas um herdeiro emocionalmente perturbado dedicado a dissipar a fortuna de sua família. Não foi o que aconteceu. Apesar de suas dificuldades e fracassos, o seu fascínio infantil pelos telescópios o impulsionou a buscar financiamento para a construção de grandes telescópios até embarcar num extenuante empreendimento, que chegou a lhe suscitar alucinações. As crises psicóticas não o impediram na busca de implementar o projeto do maior telescópio do mundo situado no Monte Wilson, na Califórnia. Nele mesmo, no Monte Wilson, se situa a cena do nosso primeiro fragmento. Aqueles homens lutando contra o sono e varando as madrugadas geladas não eram bandidos ou fugitivos, eram astrônomos que, agora, poderiam perscrutar distâncias anteriormente inimagináveis e, ao fazê-lo, ampliar a nossa percepção do universo. Um deles, de uma geração um pouco posterior, que se destacou enormemente, chamava-se Edwin Hubble. E as duas mulheres surdas? Elas não podiam ser astrônomas, porque era função destinada apenas aos homens. Elas, então, chamavam-se Annie Cannon e Henrietta Leavit, e se encarregaram da análise minuciosa das inúmeras fotografias tiradas pelos astrônomos. Catalogaram milhares de estrelas, calcularam as mudanças de luminosidade das estrelas variáveis e, com isso, puderam estabelecer as suas distâncias em relação ao nosso planeta. Essa conjugação de esforços foi essencial para dirimir um grande debate científico: o nosso universo se restringiria à nossa Via Láctea ou seria incomparavelmente maior? A resposta a esse grande debate se desdobrou em outras perguntas cruciais: a distância das estrelas em relação à Terra seria fixa ou estaria aumentando? A comprovação da expansão não entraria em choque com a ideia tão arraigada de um cosmos estável e eterno? Isso não implicaria um começo de tudo? Não remeteria à explosão de um ponto inicial de onde emergiriam as centenas de bilhões de galáxias, como se fosse uma espécie de criação?
Todas essas perguntas, com implicações teóricas extremamente complexas, envolveram e ainda envolvem alguns dos maiores gênios científicos do nosso tempo. Retornemos, contudo, às vidas que foram fragmentariamente narradas. Na sua aparente pequenez elas contribuíram decisivamente para modificar a nossa visão do mundo. Elas testemunharam com sua obstinação, obsessão, dificuldades e deficiências o significado da frase latina “per ardua ad astra”: alcançar as estrelas enfrentando as adversidades. Alguém mais cético, no entanto, poderia duvidar da utilidade daquela extraordinária dedicação. E daí? O que importa termos uma compreensão do cosmos? Isso melhora o nosso quotidiano? Nos traz mais dinheiro? Diminui a nossa dor ou aumenta o nosso prazer? Mitiga, por acaso, a penúria dos trabalhos e dos dias? As estrelas não foram inúteis para aqueles homens e mulheres que tanto se empenharam?
São dúvidas que nos afligem quando somos tomados pela fadiga, a tristeza e o desânimo. Mas, não poderíamos dizer o mesmo das conversas com os amigos, da brisa da tarde, dos miúdos gestos de solidariedade, dos combates anônimos por um mundo melhor, mais justo e fraterno e que certamente não veremos com os nossos olhos? A utilidade, afinal, seria a medida de todas as coisas? Se assim for ela não sufocaria a espantosa aventura do espírito humano? Qual a utilidade do amor? Quem sabe o poeta pode nos ajudar? “Ora (direis) ouvir estrelas! /Certo perdeste o senso! / E eu vos direi, no entanto? Que para ouvi-las, muita vez desperto / E abro as janelas, pálido de espanto…Conversamos toda noite enquanto /A Via Láctea como um pálio aberto, cintila / E, ao vir do sol, saudoso e em pranto / Inda as procuro pelo céu deserto /Direis agora, “Tresloucado amigo!”/ Que conversas com elas? Que sentido / Tem o que dizem, quando estão contigo?/ E eu vos direi: “amai para entendê-las! ? Pois só quem ama pode ter ouvido / Capaz de ouvir e de entender estrelas” (Olavo Bilac)
Carlos Roberto Drawin é professor emérito do departamento de Filosofia da FAJE
16/10/2025

Foto: Parilov / Shutterstock