A mãe da terra

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Marília Murta de Almeida

Em 2019 o então presidente brasileiro declarou que os indígenas são “latifundiários pobres em cima de terras ricas”. Essa ideia pode ressoar como verdadeira por onde impera a perspectiva capitalista, ou seja, por quase toda parte da Terra em nosso tempo. Entretanto, os indígenas não se veem como pobres e muito menos como latifundiários. Quando pensamos na terra como fonte de riqueza, temos em mente o que há por baixo ou por cima dela, conforme ouvi recentemente de um indigenista. A exploração da riqueza impede o estabelecimento da relação com a terra por ela mesma.

Praticamente todas as culturas identificadas como originárias se diferenciam de nós, os buscadores de riquezas, exatamente pela relação que têm com a terra. Não a violentam esburacando sua superfície à procura de minerais e nem a devastam com enormes plantações monocultoras que criam desertos verdes. Não se veem como donos da terra – ao contrário, é a terra que os possui. São filhos da terra e criam imagens às vezes sacralizadas da Mãe Terra. Mas podem ser também as mães da terra, aqueles que a vivificam.

Dona Salu, personagem de Torto Arado, romance de Itamar Vieira Junior, expressa essa ideia em meio a um grande conflito em que a terra ocupada por sua comunidade está em processo de reintegração por aqueles que se dizem seus donos. Leiamos um trecho:

“Cheguei aqui moça e jovem. Aqui vivi, criei meus filhos, labutei com meu marido, vi meus vizinhos e compadres serem enterrados, lá no cemitério que vocês fecharam. Fui parida, mas também pari esta terra. Sabe o que é parir? A senhora teve filhos. Mas sabe o que é parir? Alimentar e tirar uma vida de dentro de você? Uma vida que irá continuar mesmo quando você já não estiver mais nessa terra de Deus? Não sei se a senhora sabe, mas eu peguei em minhas mãos a maioria desses meninos, homens e mulheres que a senhora vê por aí. Sou mãe de pegação deles. Assim como apanhei cada um com minhas mãos, eu pari esta terra. Deixa ver se a senhora entendeu: esta terra mora em mim”, bateu com força em seu peito, “brotou em mim e enraizou”. “Aqui”, bateu novamente no peito, “é a morada da terra. Mora aqui em meu peito porque dela se fez minha vida, com meu povo todinho. No meu peito mora Água Negra, não no documento da fazenda da senhora e seu marido. Vocês podem até me arrancar dela como uma erva ruim, mas vocês nunca irão arrancar a terra de mim”.

 

A possibilidade de vir a perder a terra não existe para Salu. Ela pode ser retirada da terra como erva ruim, mas a terra jamais será retirada dela. A ameaça de perda da terra é percebida como o risco de ser obrigada a não mais permanecer lá. O documento de posse não tem para ela nenhum significado. Podemos perceber dois modos absolutamente diferentes de relacionamento que expressam visões de mundo em luta. O peito de Salu é morada da terra e isso é uma realidade inalcançável, não há violência capaz de desfazê-la. Se for retirada de lá, carregará consigo a terra que, não mais acessível ao corpo, será como um espinho cravado no peito. Por outro lado, os proprietários possuem o documento de posse e a ele dão todo o valor; a terra é sua propriedade e é fonte de riqueza. Ela própria é riqueza, e pode gerar mais riqueza. Não aceitam perdê-la porque isso significaria empobrecimento.

Ao dizer que pariu aquela terra, a parteira Salu revela uma reviravolta até mesmo para nossa (precária) compreensão das cosmovisões originárias. A terra não é apenas mãe, é também filha, é a que é por nós parida e cuidada. E ela explica que parir é tirar uma vida de dentro de si mesma. Tirar a vida, deixá-la viver fora de si, desdobrada, vida que continua depois que quem a pariu já não viver. A terra se desdobra em ambiguidade: está dentro e fora de Salu. Estando dentro, como sua própria vida, como todo filho parido continua dentro de quem pariu, permanecerá com ela. Fora, segue seu próprio caminho, e se Salu for embora, continuará lá.

Entretanto, se passar às mãos de quem a vê como posse e riqueza, não haverá mais quem cuide dela como quem a pariu. Os filhos da terra são os que cuidam dela como sua filha. Itamar Vieira Junior faz uma torsão simbólica em que percebemos que o grande símbolo da Mãe Terra não é suficiente para que transformemos nossa relação com a terra. Seria preciso perceber que também geramos a terra, além de termos sido por ela gerados. De acordo com o modo com que nos relacionamos com ela, a vivificamos ou a matamos. Gerar a terra é vivificar, se pôr em relação de cuidado que gera. Cuidar, assim, não é meramente manter a vida, é gerar mais vida, vivificar.

Se a terra parida por Salu e sua comunidade for entregue a seus proprietários, se dará uma separação cuja dimensão dificilmente conseguimos conceber. A terra será entregue à exploração necrófila. Salu e seu povo serão entregues à dor de não mais pertencer e de presenciar a exploração predatória.

A Terra, nossa casa comum, está quase toda entregue a essa exploração. Precisamos então aprender com Salu, mulher quilombola, e com todos os seus companheiros, remanescentes de povos das matas e das florestas espalhados por todos os cantos do planeta, a parirmos a terra, para assim cuidarmos dela como mães e pais.

Marília Murta de Almeida é professora no departamento de Filosofia da FAJE

23/10/2025

Foto: Shutterstock

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