A hipocrisia é assim…

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Luiz Sureki, SJ

“As pessoas criam regras que não cumprem, impõem comportamentos que não têm, e exigem o respeito que não dão. Querem ditar princípios que não seguem, como se a verdade fosse apenas para os outros e nunca para si mesmas. É fácil apontar erros alheios, quando não se olha no próprio espelho. O mais difícil é viver com coerência, praticar o que se prega e respeitar os limites que se exige dos outros. A hipocrisia nasce da falta de honestidade consigo mesmo e cresce onde falta humildade para admitir as próprias falhas. Mas não se deixa contaminar. Não se perca tentando agradar quem vive cobrando o que nunca oferece. Escolha ser autêntico. Viva de acordo com seus valores. Não pelas expectativa impostas por quem não sabe o que é integridade. No fim, o caráter sempre fala mais alto que as palavras. Seja quem inspira, não quem decepciona, porque a vida recompensa quem vive com verdade, e não quem veste máscaras para agradar.”

Essa bela mensagem acessível nas redes sociais, postada por Luiz Melo, dá o que pensar. Com efeito, a hipocrisia é uma das tentações mais antigas e persistentes da condição humana. Não se trata apenas de um vício moral isolado, mas de uma forma de viver desconectada da verdade de ser. Quem é hipócrita vive em duplicidade: uma face pública que aparenta virtude e uma face oculta que esconde incoerência. Essa duplicidade destrói a autenticidade, mina a confiança e, no limite, corrói o próprio sentido da vida.

Vivemos em um tempo em que a exposição se tornou regra: redes sociais multiplicam vozes, opiniões e julgamentos. Contudo, essa visibilidade não trouxe necessariamente mais verdade, mas, muitas vezes, mais máscaras. É fácil criar a imagem de quem segue princípios, enquanto, no íntimo, se vive em contradição. O coração da hipocrisia é a incapacidade de olhar-se no espelho com honestidade.

A filosofia sempre buscou o caminho da verdade, não como um conceito abstrato, mas como modo de existência. Sócrates, ao afirmar que “a vida não examinada não merece ser vivida”, denunciava já o perigo de viver sob aparências. Para ele, mais importante do que a reputação era a coerência entre pensamento, palavra e ação. Viver na verdade significa unificar o que se pensa, o que se diz e o que se faz. A incoerência entre essas dimensões gera a máscara hipócrita.

Nietzsche também criticava ferozmente a moral das aparências. Para ele, a hipocrisia social era a maior ameaça à autenticidade da vida. Viver autenticamente não é apenas dizer a verdade, mas encarnar a verdade em atos concretos, ainda que isso custe o desconforto de nadar contra a corrente. A autenticidade exige coragem, porque quem vive com integridade expõe não uma máscara, mas o próprio rosto ‒ com todas as suas fragilidades.

O filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard dizia que a verdade é sempre subjetiva ‒ não no sentido de relativismo, mas porque ela só se torna real quando encarnada na existência concreta. Uma verdade que não se vive é apenas ideia vazia. O hipócrita fala de valores sem vivê-los; o autêntico transforma valores em vida.

Viver de acordo com os próprios valores é uma escolha radical de liberdade. O hipócrita vive aprisionado pela expectativa do olhar alheio; precisa sustentar sua máscara para agradar, temendo a rejeição. Já o autêntico encontra sua liberdade no enraizamento da verdade interior. Ele não depende da aprovação da multidão, nem do aplauso de admiradores virtuais. Sua dignidade não se mede em curtidas ou aplausos, mas na consciência tranquila de viver segundo o que acredita ser vital.

Essa autenticidade não significa indiferença ao outro, mas justamente o contrário: só quem é fiel a si mesmo pode ser verdadeiramente fiel aos outros. Não há autenticidade sem humildade. Admitir as próprias falhas não é sinal de fraqueza, mas de maturidade. O hipócrita teme ser descoberto e por isso finge virtude. O autêntico, ao contrário, não precisa fingir: sabe que é falho, mas luta para viver segundo seus valores. A humildade, aqui, não é submissão servil, mas coragem de ser verdadeiro.

Escolher a autenticidade é também escolher inspirar. Quem vive de acordo com valores genuinamente humanos desperta nos outros o desejo de fazer o mesmo: de serem mais humanos. A coerência atrai, porque é rara. E a vida, cedo ou tarde, recompensa quem vive com verdade: talvez não com aplausos fáceis, mas com a paz interior que nenhum aplauso pode dar. A hipocrisia pode até seduzir por algum tempo, mas não constrói nada duradouro. As máscaras caem, cedo ou tarde.

A filosofia, a espiritualidade do Evangelho e a experiência humana inscrita no mais profundo das culturas da humanidade convergem nesse ponto: a integridade vale mais do que a aparência, e o caráter fala mais alto do que qualquer palavra. Não por acaso, Jesus foi implacável diante da hipocrisia dos fariseus, escribas e mestres da lei. Eles, que deveriam ser guias espirituais, escondiam-se atrás de normas exteriores enquanto descuidavam da justiça, da misericórdia e da fidelidade (cf. Mt 23, 23). Jesus denuncia justamente essa duplicidade: aparentar piedade, mas viver distante da verdade. Sua crítica não era mera condenação, mas um chamado a uma vida íntegra, onde o interior corresponda ao exterior, e onde as palavras sejam sustentadas pelos atos. Seguir Cristo, portanto, é escolher a autenticidade contra a máscara, a verdade contra a aparência, a integridade contra a hipocrisia.

A hipocrisia política é demasiado evidente para passar desapercebida. Ela manifesta-se, em nossos dias, sobretudo no descompasso entre palavras e atos. Muitos políticos proclamam transparência, mas agem nas sombras; defendem valores éticos, mas negociam interesses escusos; exaltam a justiça, mas alimentam estruturas de privilégio; falam em “ouvir o povo”, mas se fecham em gabinetes blindados. Trata-se de uma encenação constante, na qual a imagem pública substitui a coerência interior. O palco da política, em vez de espaço de serviço, transforma-se em teatro de aparências.

Na era das redes sociais, a hipocrisia ganha ainda mais visibilidade, pois o discurso se reduz muitas vezes a slogans cuidadosamente elaborados para gerar impacto, enquanto a realidade das decisões se oculta sob interesses ocultos. A hipocrisia se alimenta da fragilidade humana. Pessoas simples, que confiam nos discursos de seus líderes, acabam por reproduzir padrões incoerentes, acreditando que esse é o “normal”. O poder da palavra, quando divorciado da verdade, manipula consciências e cria ilusões coletivas. Também o púlpito religioso, quando se transforma em palco e a mensagem em espetáculo, a aparência substitui a verdade. O resultado é uma religiosidade de fachada, que atrai multidões, mas não transforma corações.

Por isso, a responsabilidade de quem governa, ensina ou lidera é muito grande: suas palavras e atitudes formam consciências. Se forem coerentes, inspiram a autenticidade; se forem hipócritas, produzem e espalham todo tipo de fake news.

O antídoto está em cultivar o discernimento, não aceitar aparências fáceis e exigir de líderes a mesma integridade que cada um busca viver em sua vida cotidiana como simples cidadãos de bem.

Luiz Sureki, SJ é professor e pesquisador no departamento de Filosofia da FAJE

06/11/25

Foto: Shutterstock

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