Pe. Jaldemir Vitório SJ
A recente chacina no Complexo do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, destampou o caldeirão do “cristianismo” aleatório. Causou-me asco a maneira como certos “terrivelmente cristãos” acharam que a polícia havia matado pouco; deveria ter matado mais, para fazer uma limpeza geral, de modo a “cancelar o CPF” dos indesejáveis da sociedade, como se, com isso, o problema da violência e da criminalidade fossem resolvidos e a cidade pudesse dormir sossegada, com o advento da almejada paz. Ledo engano! Tais pseudocristãos enganam-se sob muitos pontos de vista. Gostaria de considerar aqui o tremendo equívoco religioso, já que a felicidade com que comemoraram a matança indiscriminada de jovens, pretos e favelados, com a justificativa de serem traficantes, se choca com um tópico fundamental da tradição judaico-cristã, da qual dizem ser adeptos e propagandeiam aos quatro ventos.
A fé bíblica fala da sacralidade da vida humana por trazer em si a marca de Deus. Diz Gênesis 2,7: “o Senhor Deus formou o ser humano com o pó do solo, soprou-lhe nas narinas o sopro da vida, e ele se tornou um ser vivente”. O dinamismo vital de todo ser humano, sem exceção, – a vida –, desde o nascer até o morrer, tem origem em Deus Criador, que lhe garante o existir e o agir, respeitando-lhe a liberdade, tanto para o bem quanto para o mal. A divinização original não compromete a liberdade humana; simplesmente sublinha que, quando o ser humano faz o mal, contraria sua realidade original. Essa convicção soma-se a outra, de igual importância, como afirma Gênesis 1,27: “Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus o criou. Homem e mulher ele os criou”. Afirmação revolucionária, na época de sua formulação, por contrariar as antropologias cultivadas nas religiões de então que falavam do ser humano escravo das divindades. O teólogo bíblico intuiu que os seres humanos trazem em si a divindade da qual se tornam reflexo. Em cada ser humano se pode perceber o rosto e a presença do Deus Criador que lhe dá dignidade e exige respeito por sua criatura.
A criação não comporta seres humanos de primeira categoria e seres humanos de segunda categoria, como certa cultura escravagista perversa inculcou na consciência das pessoas, a ponto de levá-las a pensar que esse esquema é evidente, como se o próprio Deus quisesse assim. É espantoso ver cristãos acharem normal a existência de seres humanos classe A – brancos, bonitos, ricos, de fino trato, éticos, cultos, bem alimentados, trabalhadores, profissionais de relevo social, viajados, com muitas capacidades e talentos –; e seres humanos classe B – negros, feios, pobres, periféricos, sem finesse, devassos, ignorantes, preguiçosos, fadados a profissões subalternas, portadores de múltiplas deficiências e limitações. Pior ainda, os da classe A se darem o direito de submeter os da classe B a seus caprichos, sem escrúpulos de tratá-los como escravos, servindo-se deles e explorando-os sem dó nem piedade. E aprovar sua eliminação, mesmo violenta, entendendo ser exigência da “faxina geral da sociedade”, para colocá-la nos eixos, pois, no pensar dessas pessoas, o grande problema da sociedade consiste na existência de pobres, que a impede de viver em paz. Se não houvesse “esse tipo de gente”, a sociedade seria outra: linda, maravilhosa, formada por gente de bem, bonita, elegante, educada, sarada, deslumbrante. Que pensamento curto! Um renomado sociólogo classifica a classe A como elite; e a classe B como ralé. A vida da primeira tem valor; a da segunda, não. A vida da primeira deve ser protegida e garantida. A vida da segunda, por não ter valor, pode ser eliminada, pela falta de saneamento básico, pela falta de acesso à saúde, pelas condições precárias, inseguras e insalubres de trabalho, pela falta de moradia digna, pelo acesso limitado às condições mínimas para se levar uma vida digna ou, simplesmente, pelas balas da polícia. No entanto, que lástima ver indivíduos da classe B defendendo pautas em prol da classe A e criticando pautas que beneficiam a própria classe. Ver pobres abrindo mão da própria dignidade ou não terem consciência dela, e renunciarem a lutar por seus direitos de seres humanos, filhos e filhas de Deus, que trazem no coração o sopro vital do amor divino, que os fez “à sua imagem e semelhança”. Ver pobres defendendo a “meritocracia”, em contexto social de tremenda desigualdade, posicionando-se contra as políticas afirmativas de cotas que visam corrigir a injustiça histórica perpetrada contra os afrodescendentes.
Esse tipo de cristianismo perverso cega seus adeptos e os impede de se darem conta de como o Deus da Bíblia tem horror ao assassinato das criaturas humanas. Não por acaso, o quarto capítulo do texto bíblico trata desse tema ao narrar o fratricídio de Caim contra o irmão Abel (Gênesis 4,1-16). Deus confronta o assassino com a constatação: “do solo a voz do sangue do teu irmão está clamando por mim!” (v. 10). Na concepção da época, a vida encontrava-se no sangue. E o sangue insepulto de Abel gritava, pedindo a Deus que o vingasse. Todo sangue humano derramado, ao longo dos tempos, resultado da maldade e da covardia humana, seja de quem for (da polícia ou das facções), gritará pedindo a Deus que lhe faça justiça. À luz desse princípio, a chacina carioca deveria chocar a consciência de todo cristão e toda cristã dignos desse nome. Quando isso não acontece, deve-se a um grave desvio em sua concepção de fé.
Jesus de Nazaré retomou e reinterpretou o “Não matarás!” do Decálogo e deixou para os discípulos e as discípulas recomendações extremamente restritivas. Em Mt 5,21-22, no contexto do Sermão da Montanha, ensina: “ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás, aquele que matar terá de responder no tribunal. Eu, porém, vos digo: todo aquele que se encolerizar contra seu irmão, terá de responder no tribunal; aquele que chamar seu irmão raqá estará sujeito ao julgamento do Sinédrio; aquele que lhe chamar moré terá de responder na geena de fogo”. Portanto, duas formas de violar o mandamento sem, necessariamente, tirar a vida física do outro: pela cólera e por palavras. Transcrevi as duas palavras como estão no grego por serem “palavras letais” na comunidade de Mateus, impossível de serem traduzidas em nossas línguas. Palavras letais são aquelas, encontradas em todas as línguas e culturas, que têm o poder de destruir a boa-fama alheia, ferir a dignidade, reduzir o outro a um verme. Enfim, matá-lo! São as palavras usadas pelos maridos para ferirem as esposas; os brancos para inferiorizarem, ainda mais, os pretos; os nativos para menosprezarem os estrangeiros e os migrantes; os da classe rica para humilharem quem trabalha para ela; os cultos para sublinharem sua diferença em relação aos iletrados; os policiais para se mostrarem superiores aos “bandidos”. Cada um, leitor e leitora, poderá alargar essa lista, onde “palavras letais” são usadas como armas para ferir e matar, não o físico, e sim a alma, a dignidade do outro.
Em consonância com os ensinamentos de Jesus de Nazaré, o “não matarás” se aplica a mil outras situações, incluindo o aborto, assassinato cruel, cada vez mais aceito e admitido em nossa sociedade “cristã”. Pensemos nas mortes causadas pelos políticos corruptos que roubam verbas destinadas a obras de saneamento básico em regiões periféricas e pobres, de modo a perpetuar a incidência de mortalidade infantil, que poderia ser diminuída ou erradicada. Nas mortes morais e físicas causadas pelas fakenews disseminadas nas redes sociais, à margem do compromisso com a verdade, a ética e a justiça. Nas mortes causadas pelas mudanças climáticas, cujos responsáveis, ávidos pelo lucro, olvidam as trágicas consequências de suas decisões egoístas. Nas mortes causadas pelas guerras, não apenas os corpos humanos dilacerados por bombardeiros, também a situação de pessoas que morrem no anonimato, pois a guerra impediu-lhes o acesso ao necessário para sobreviver. Nos pais abandonados por filhos ingratos nos asilos, sem receberem o devido afeto, que morrem carecendo de amor e de reconhecimento de sua dignidade. Nos pobres explorados por líderes religiosos estelionatários que abusam de sua boa-fé e lhes exigem o dízimo até do dinheirinho que possuem para comer e comprar remédios. Esses e tantos outros são igualmente assassinatos, na avaliação da fé cristã. Os leitores e leitoras poderão levar a lista adiante e acrescentar-lhe novas situações.
Por conseguinte, só cristãos mal-intencionados ou malformados serão capazes de se alegrar com qualquer espécie de atentado à vida humana, seja qual for. Uma frase peremptória do Mestre dispensa interpretação: “eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (João 10,10). Portanto, nenhum vilipêndio ou, pior ainda, eliminação da vida humana, pelo homicídio, será aplaudido e apoiado por um cristão verdadeiro. Antes, o autêntico discípulo de Jesus de Nazaré se empenhará pela construção de uma sociedade justa e fraterna, onde a vida humana seja respeitada, da concepção à morte, pela santidade que carrega em si. Eis a convicção de quem, de fato, se dispõe a ser honesto com o Jesus de sua fé!
Pe. Jaldemir Vitório, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
13/11/2025

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