Bruno Pettersen
Sou um leitor ávido de ficção científica. Recentemente inclusive publiquei aqui no Palavra e Presença um artigo sobre Duna, de Frank Herbert. Apesar de ter lido uma quantidade bastante razoável dos clássicos, um dos livros que eu nunca tinha lido era A Revolta de Atlas, de Ayn Rand (1957). Há uma razão para ter demorado tanto tempo. Rand sempre me foi apresentada em livros, artigos, comentários, vídeos etc. como uma liberal absolutamente radical, sem qualquer filtro social. Para o meio de ficção científica que eu frequento ela sempre foi vista com olhos desconfiados.
Por outro lado, eu já tinha lido literatura de comunistas radicais como o excelente Nós, de Yevgeny Zamyatin (1924), ou o bom Estrela Vermelha, de Alexander Bogdanov (1908), mas nunca uma obra completamente liberal como Rand. Mas devo dizer que o que me impedia de ler a obra dela era puro preconceito. Ao mesmo tempo, ninguém pode negar o tamanho da influência de Rand nos Estados Unidos e na sua capacidade formativa na cultura liberal. Então me propus a ler os três tomos e as quase 1500 páginas do livro. Mas, afinal, quem é Ayn Rand?
Além de profícua escritora de literatura, Ayn Rand (1905–1982) é uma filósofa relevante no debate liberal e na formulação de uma teoria ética conhecida como objetivismo. Trata-se de um sistema filosófico completo, que abrange metafísica, epistemologia, ética, política e estética. Rand faz parte de uma forte reação ao idealismo alemão, defendendo do seu lado uma realidade objetiva, independente de qualquer consciência ou crença, que sustenta que o ser humano conhece o mundo exclusivamente pela razão, rejeitando tanto o misticismo religioso quanto o relativismo subjetivista. Em ética, defende uma moral da racionalidade e do interesse próprio, segundo a qual o indivíduo deve ser o fim último de suas ações, buscando a própria realização produtiva como virtude central. Politicamente, o objetivismo conduz a um ideal de capitalismo laissez-faire, entendido como o único sistema compatível com a natureza racional do ser humano. Em A Revolta de Atlas, Rand dedica volumosas partes do tomo III, intitulado A = A, para dramatizar esses princípios filosóficos por meio do misterioso personagem John Galt, que se torna a personificação literária do núcleo teórico da autora.
Apesar de John Galt ocupar um papel conceitual central, é essencial dar destaque à verdadeira protagonista do romance, a empresária Dagny Taggart. O que primeiro me surpreendeu foi o fato de termos, em 1957, uma obra de ficção científica de grande circulação com uma mulher como personagem principal. A maior parte dos clássicos de ficção da época oferecia protagonistas masculinos, relegando as mulheres ao papel de coadjuvantes. Contudo, Rand coloca uma figura feminina no centro da narrativa, e uma figura marcante. Dagny é inteligente, pragmática e segura de si. Ela se mostra uma mulher sem medo de afirmar quem é, com ideais firmes e convicções inabaláveis. Não há como ler o livro sem se admirar por ela.
A trama acompanha a transformação de uma poderosa sociedade que, aos poucos, abandona um modelo liberal em direção a uma crescente distopia socialista. Essa sociedade passa a perseguir o bem coletivo a qualquer custo, sacrificando progressivamente a iniciativa individual, a liberdade e a criatividade humana. Nesse processo, a Taggart Transcontinental, empresa ferroviária parcialmente chefiada por Dagny, torna-se o palco onde são apresentadas as principais transformações sociais. À medida que o governo assume o controle total da economia e impõe regulamentações sufocantes, as empresas eficientes são punidas, enquanto empreendedores inovadores começam a desaparecer misteriosamente. A infraestrutura se deteriora, a produção entra em colapso e a sociedade se aproxima de um ponto irreversível de destruição, justamente por ter eliminado aqueles que sustentavam seu progresso: é daqui que surge a ideia de que são os sujeitos de livre pensamento, os que buscam empreender que são os Atlas que seguram o mundo em suas costas.
Além de Dagny Taggart, outro personagem fundamental é Hank Rearden, empresário do setor metalúrgico e inventor de uma liga revolucionária, o Aço Rearden. Ele é retratado como um empreendedor genial, disciplinado e profundamente comprometido com seu trabalho, quase incapaz de separar sua identidade pessoal de sua obra produtiva. Rearden representa o ideal randiano do indivíduo criador que enfrenta, simultaneamente, a perseguição estatal, a incompreensão da sociedade e conflitos morais íntimos, sobretudo no que diz respeito à sua relação amorosa-intelectual com Dagny Taggart e à defesa da própria autonomia contra um mundo que tenta submetê-lo. Seu arco narrativo é um dos mais cruéis do romance, revelando o preço emocional e ético que um criador paga quando vive em uma sociedade que condena a excelência.
Tanto Dagny quanto Hank simbolizam aquilo que é mais importante em todo o romance: a busca pela realização pessoal por meio da transformação do mundo ao redor deles. Do ponto de vista filosófico, a questão que se impõe ao longo do livro é uma das mais fundamentais da filosofia política: o bem coletivo é alcançado ao conceder liberdade ou igualdade aos cidadãos? Na hipótese de Rand, não há dúvidas: é pela liberdade que a transformação social deve se fundar, sem jamais permitir que a liberdade se curve ao bem coletivo, e é nesse sentido que o romance dela se coloca como uma das mais interessantes obras filosóficas articulada com a literatura.
Mas por que ler A Revolta de Atlas? Primeiro, porque o livro é extremamente engajante, com uma história pouco usual que destaca empresários como heróis. Depois, como parte da ficção científica, Rand desafiou o modelo dos protagonistas masculinos com sua Dagny, fazendo isso pelo menos duas décadas antes de escritoras como Octavia Butler e Ursula K. Le Guin. Por fim, a leitura filosófica da obra dela é profundamente desafiadora para todos que se interessam por ética e filosofia política. É nesse contexto que Ayn Rand nos obriga a revisitar convicções que julgávamos inabaláveis, e isso já basta para justificar a leitura.
Bruno Pettersen é professor de Filosofia da FAJE
27/11/2025
