Marília Murta de Almeida
Clarice Lispector tinha íntimas relações com bichos. Essa proximidade foi homenageada pelo artista plástico Edgar Duvivier que decidiu esculpir uma estátua de Clarice Lispector acompanhada de seu cachorro Ulisses, o animal que foi seu companheiro nos últimos anos de vida. Clarice e Ulisses estão instalados na Praia do Leme, no Rio de Janeiro, próximo ao último endereço da escritora. A mulher olha ao longe, o cãozinho olha para a mulher. Parece que é uma das únicas estátuas de animal, à exceção de cavalos militares, instaladas em cidades brasileiras. Uma homenagem cheia de significado.
Clarice, em entrevistas e textos literários – alusivos ou não à sua vida –, deixou inúmeras páginas em que relata e reflete sobre os animais. Na crônica “Bichos”, ela diz: “Ter bicho é uma experiência vital. E a quem não conviveu com um animal falta um certo tipo de intuição do mundo vivo. Quem se recusa à visão de um bicho está com medo de si próprio”.
Ela, que parece jamais ter tido medo de si própria, conviveu desde a infância com cavalos, gatos, cachorros e galinhas. Com os cavalos conta ter tido um dia “perfeitas relações”. Dos diversos cachorros que teve podemos vislumbrar suas personalidades particulares. Por meio dos gatos que povoaram sua infância, percebemos um amor desdobrado. E com as galinhas e ovos acompanhamos seu esforço reflexivo que alcança uma sofisticada e intricada filosofia.
Nos livros infantis vemos a escritora abraçar a imaginação, sempre acompanhada dos animais. O coelho pensante que foge da gaiola misteriosamente inaugura esse caminho. A mulher que matou os peixes relata uma série de histórias que pretendem atenuar sua culpa ao provar que tem amor pelos bichos. A galinha Laura, feia e burra, mas capaz de uns pensamentozinhos, conduz o leitor para um delírio final que aponta para a liberdade ousada pela Clarice do livro de contos A via crucis do corpo. E, por fim, o cachorro Ulisses late para sua dona Clarice uma história toda inventada por ele, tal como o narrador Rodrigo S. M., de A hora da estrela.
Toda essa literatura me aproxima de mim e dos bichos. Seguindo a lógica clariciana, não há distância entre uma coisa e outra. A intuição sobre o que é vivo que desenvolvemos ao conviver com os bichos nos desperta para a compreensão da coisa que é viva e que compõe o que somos. Eu, coisa viva que não me conheço, percorro o caminho em meio aos bichos para alcançar trilhas escondidas em mim. Enquanto escrevo agora, um gato ferido dorme ao meu lado. As cachorras lá fora farejam a chuva que quase cai. A gata livre olha pela janela – gostaria de dizer que contempla a noite nova.
Na infância estive com bezerros e cavalos também em perfeitas relações, nas roças longe de casa onde passava férias. A certa altura, tivemos dois micos presos numa gaiola grande na varanda de casa. Com esses já tive relações de conflito. Temia e admirava. Percebia algo fora de lugar, mas gostava de tê-los por perto. Um hamster, alguns porquinhos da índia e um cachorro grande demais para a nossa falta de jeito também passaram por nossa casa.
Depois fui tragada pela cidade e me distanciei de mim. Quando os bichos começaram a voltar à minha vida, já era mãe de duas crianças. E as crianças nos chegam como bichinhos, vida nua. À medida que crescem, a vida se desdobra em humanidade. Mas o bicho que somos continua em nós.
Recentemente fui assaltada pelo gato agora ferido que dorme ao meu lado enquanto escrevo. Como previa Clarice, me esquivava dele como quem se esquiva de si mesma. Quando se feriu, me contorci entre rejeição e apego e quase o mandei embora para ser cuidado por outro. Mas não. Deixei ficar, fiquei. Cuidar dele me esfolou por dentro. Feriu. Vislumbrei linhas tênues tecendo caminhos quase apagados de memória e dor.
O ser vivo que não tece palavras reverbera a carne que também em mim é antes da palavra. O indizível, tão tematizado pela fortuna crítica de Clarice Lispector, é carne animal e vegetal na obra da autora. O indizível é a carne que chora e ri em nós antes e depois das palavras. Cuidar do gato ferido é perceber feridas abandonadas.
Como buracos escondidos em paisagem mais do que conhecida, as feridas surpreendem por não se recobrirem pela erva que toma conta do restante do terreno. Ficam como pequenos desertos com o poder de rememorar o que não foi cuidado. A ferida viva do gato que me assaltou fez brotar amor onde parecia haver só terra ressequida.
A vida sem palavras dos bichos revolve em silêncio o que em nós foi tornado árido, como a língua do gato que umedece e limpa insistentemente o pelo ressecado.
Marília Murta de Almeida é professora e pesquisadora no departamento de Filosofia da FAJE
27/11/2025

Foto: Marília Murta de Almeida