Alfredo Sampaio Costa SJ
A gratidão constitui o “leitmotif” dos Exercícios Espirituais e é a dinâmica de base pela qual Inácio conduz a pessoa a um compromisso com o serviço originado com gratidão.
As pessoas sempre louvam a gratidão. Escritores famosos comentaram que “a gratidão é a memória moral da humanidade” (George Simmel) ou que “a gratidão é a forma mais requintada de cortesia” (Jacques Maritain). Igualmente surpreendentes são os comentários sobre a ingratidão: “A ingratidão é a essência da maldade” (Emmanuel Kant) e “a ingratidão é uma abominação” (Sêneca).
Os fundadores de grandes religiões e os grandes conhecedores da pessoa ocuparam-se da dimensão “gratidão-ingratidão” séculos antes que a ciência se ocupasse dela . Sem saber, Cervantes já enumerava em 1615 os elementos fundamentais do agradecimento:
“Entre os maiores pecados que os homens cometem, ainda que alguns digam que é a soberba, eu digo que é a ingratidão, atendo-me ao que se costuma dizer: “o inferno está cheio de mal-agradecidos”. Enquanto me foi possível, procurei sempre fugir desse pecado desde o instante em que tive uso da minha razão; e se não posso pagar as boas obras que me fazem com outras boas obras, ponho em seu lugar o desejo de fazê-las, e quando esses não bastam, as publico”[1].
A crítica de Inácio é particularmente veemente: “Na sua Divina Bondade, eu considero (embora outros possam pensar diferentemente) a ingratidão entre os mais abomináveis males e pecados aos olhos do Nosso Criador e Senhor e das criaturas feitas abertas para a glória divina… O menosprezo dos benefícios, das graças, dos dons que temos recebido é a causa, princípio e origem de todos os males e pecados. Ao contrário, – continua Inácio – “consciência e gratidão dos benefícios e dons recebidos – quanto merecem ser amados e estimados!”[2].
O QUE SIGNIFICA “GRATIDÃO”?
Não é nada fácil definir um sentimento, que se expressa das formas as mais diversas. Contudo, parece-nos poder encontrar 3 elementos geralmente presentes em toda experiência de gratidão[3]:
– Alguém oferece um dom; aquele que o recebe pode estar sob alguma obrigação ou dever, mas o sentido do dom vai de alguma forma para além disso;
– Aquele que recebe o dom, interpreta os motivos altruísticos do doador corretamente;
– O dom provoca sentimentos positivos naquele que o está recebendo, e com frequência os leva, por sua vez, a oferecer um ulterior dom – seja de volta ao doador ou para alguma terceira parte.
A gratidão parece envolver uma dinâmica permanente e autorrenovada de dom e bondade. Poderíamos dizer que a gratidão é o a retribuição da bondade. A gratidão traz alegria e contentamento; ela constrói relações positivas de confiança e eleva a autoestima de quem está recebendo o dom. Ela também encoraja o recipiente a passar adiante o presente.
Na Contemplação para alcançar o amor, a gratidão é um tema central. Quando Inácio diz que o amor consiste na comunicação recíproca do que cada um possui, está implícito aqui o tema da gratidão. Mais ainda a gratidão nos leva a desejar mais e mais sermos colocados no amor de Deus – um desejo expressado mais eloquentemente na oração “Tomai, Senhor, e recebei…”. A força geradora que move esse amor para adiante é a gratidão.
Gratidão pode provir de várias experiências muito diversificadas: interações positivas entre as pessoas (“Eu me sinto profundamente agradecido pelo fato de ser abençoado com um íntimo círculo de amizades”); receber gestos pessoais de bondade; superação de adversidades; saborear a natureza; resolver um problema complexo; atravessar situações aparentemente impossíveis.
Inácio, conforme o testemunho unânime de seus biógrafos, foi uma pessoa muito sensível aos benefícios recebidos de outros e sumamente agradecido[4]. Alguém tão bom seu conhecedor como Pedro de Ribadeneyra diz: “Entre todas as virtudes que teve Nosso Pai, uma foi muito assinalada, a da gratidão, na qual foi muito admirável”[5].
Inácio estava convencido que Deus nos presenteou através de tudo que podemos imaginar e nos chamou, por sua vez, a partilhar todos os dons que recebemos com os outros. O tema central de encontrar Deus em todas as coisas depende das possibilidades ilimitadas da gratidão na vida diária. Podemos reagir com admiração ao Concerto para piano de Mozart da mesma forma que nós podemos ser transpassados pelo borbulhar de um riacho. Da mesma forma, podemos lutar com as intrincadas equações da mecânica quântica ou olhar atentamente como uma aranha tece metodicamente a sua teia. Inácio nos recorda que todas essas coisas – e outras ainda – são canais através dos quais a graça pode fluir. Se nós tivermos tempo para contemplação, nosso foco poderá ficar mais aguçado e iremos crescer e nos tornarmos buscadores de gratidão[6].
A gratidão já foi definida como sendo “o sentimento agudo e intenso que experimentamos ao saber-nos destinatários da ação benéfica e desinteressada de outra pessoa”. Mas um sentimento é algo passageiro e pode não deixar grandes pegadas. Um sentimento experimentado ocasionalmente não permite falar que uma pessoa seja, de maneira estável, agradecida ou mal-agradecida. Para que isso seja possível, a gratidão deve ser um estado duradouro da personalidade. Um modo de estar que predisponha a pessoa a tomar consciência maravilhada de ter recebido um dom não buscado de alguém que não espera nada em troca, um dom que provoca um estado emotivo que a livre de ressentimentos e que a leva a reagir, por sua vez, de modo altruísta com os demais.
As atitudes envolvidas na gratidão implicam o pensamento, o afeto e a ação. A pessoa agradecida é alguém que chegou a cair na conta de ter recebido algo de um doador que ainda que pareça assombrosamente estranho, é desinteressado, alguém capaz de valorizar positivamente esse dom recebido e de comover-se por uma gratidão que não implica exigência de reciprocidade nem nenhuma obrigação, e se sente movido a atuar fazendo o bem, não por cortesia nem por pressão externa, mais impulsionados por uma genuína e profunda motivação a responder ao bem por bem[7].
É absolutamente essencial à gratidão a capacidade de perceber que o dom recebido chega marcado pelo desinteresse do altruísmo, algo à primeira vista incrível! Isso combate a convicção inculcada pela psicologia dinâmica de que toda ação humana é egoísta. Por isso há um tom de espanto na atitude agradecida: Não somente “por que a mim?” mas, sobretudo, “como é possível essa generosidade?”.
A psicologia tem se interessado muito sobre esse tema da gratidão. Ela se dá conta que o agradecido é uma pessoa que não se sente defraudado pela sua própria história ou, formulando de modo positivo, é uma pessoa consciente de possuir uma certa riqueza interior inalienável. O agradecido aprecia de modo superior à média aquilo que os demais contribuíram para que ele tivesse chegado a ser o que é no momento presente. As pessoas agradecidas mostram uma tendência notável a apreciar as pequenas satisfações e prazeres que costumam estar ao alcance de todos, mas muito não os percebem. Nos últimos anos se tornou especialmente popular a compreensão da personalidade por meio de 5 fatores básicos que seriam: Abertura x fechamento à experiência, Responsabilidade x irresponsabilidade, Extroversão x introversão, amabilidade x hostilidade, instabilidade emocional x estabilidade emocional. Ora, a pessoa capaz de agradecimento aparece, de modo constante, como mais extrovertida, mais aberta, mais responsável e amável. E certamente menos neurótica[8].
GRATIDÃO: O ECO DA GRAÇA
Mais do que um sentimento transitório e efêmero, para Inácio a gratidão é uma visão permanente de gratidão que reconhece o dom de tudo. A gratidão não é possível até que sejamos capazes de aceitar conscientemente que necessitamos de outros seres, que a vida é dar e receber, que é necessário suportar a frustração dos próprios limites para poder gozar de um mundo imenso de possibilidades que se estendem para mais além de mim mesmo[9].
O teólogo moral William C. Spohn captura o entendimento inaciano de gratidão quando ele fala de gratidão como “o eco da graça”. Pode parecer óbvio afirmar que a gratidão é um elemento que define a espiritualidade inaciana. No entanto, a centralidade da gratidão recebeu escassa atenção nas publicações escritas. Monika Hellwig afirma que “porque baseada nos Exercícios Espirituais, a espiritualidade inaciana está baseada numa gratidão intensa e reverência”. “Ela começa e reverte continuamente em uma consciência da presença e poder e cuidado de Deus em toda parte, para todos e em todo tempo”[10]. Esta gratidão que perpassa todos os EE se mostra sobremaneira na CAA entendida como meditação que reassume todo o processo dos EE como um aprendizado da gratidão.
Qual é a dinâmica básica inaciana que culmina no serviço e nas obras de justiça que está em ação na Contemplação para Alcançar Amor e revela uma estratégia que está presente em todos os Exercícios? Esta dinâmica engloba um tríplice movimento:
- Parte de um olhar contemplativo que aprecia o dom de toda realidade
- Dirige-se às disposições afetivas ou atitudes de gratidão e amor
- Atitudes que conduzem ao serviço, dado que, para Inácio, o amor agradecido se manifesta mais em obras do que em palavras (EE 230).
Em breve, para Inácio, a gratidão é o limiar para o amor. Em troca, o amor se torna um trampolim para o serviço!
Alfredo Sampaio Costa é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
[1] Miguel Cervantes, Don Quijote de la Mancha, 2ª. Parte, cap. LVIII.
[2] Carta de Inácio de Loyola a Simão Rodrigues de 18 de março de 1542. MHSI Epp. I, 192.
[3] Charles M. Shelton, Graced Gratitude, The Way 42/3 (July 2003) 140.
[4] Cf. Urbano Valero, “Quién más recibe más deudor se hace”. Gratitud y agradecimiento en San Ignacio de Loyola, 21-22.
[5] Dichos y hechos de N. P. Ignacio, c. 5 n. 75, ed. C. de Dalmases, Fontes narrativi II, Roma 1951, 492.
[6] Charles M. Shelton, Graced Gratitude, The Way 42/3 (July 2003) 147.
[7] Luís López-Yarto, La Gratitud, mucho más que una emoción pasajera, Manresa 85 (2013) 8.
[8] Luís López-Yarto, La Gratitud, mucho más que una emoción pasajera, 12-13.
[9] Luís López-Yarto, La Gratitud, mucho más que una emoción pasajera, 10.
[10] Monika K. Hellwig, “Finding God in All Things: A Spirituality for Today”, in Review of Ignatian Studies 28/2 (1997) 28.