Alfredo Sampaio Costa SJ
Quais são os dinamismos humano-espirituais que estão em movimento neste momento do itinerário inaciano? Acredito que são três as atitudes básicas concomitantes aqui em ação: Fazer memória, admirar-se (maravilhar-se) e a experiência da gratidão, que preenche o coração todo no desejo de corresponder a tanto amor recebido. Procurarei evidenciar a importância dessas três atitudes fundamentais no crescimento espiritual e humano. Trataremos aqui dos 2 primeiros e no próximo texto o terceiro.
1. FAZER MEMÓRIA: UMA RELAÇÃO AMOROSA
A Contemplação para Alcançar o Amor convida o exercitante, já no seu primeiro ponto, a “Fazer memória dos benefícios recebidos…” (EE 234). Essa reevocação de tudo o que foi recebido (de Deus) coloca a pessoa na atitude correta para fazer a experiência do Deus doador que não se cansa de se dar a nós. Essa capacidade de voltar ao passado, reviver experiências, recordar sentimentos e assim revigorar-se para os futuros desafios é algo próprio do ser humano. Recordar o passado nos possibilita vencer os entraves do presente e situá-lo num horizonte mais amplo. O “trazer à memória” situa toda a existência humana numa dimensão teologal, relacional, dialógica, amorosa. Trata-se de recuperar a memória de quem somos (presente) – somos criaturas amadas e portanto sempre referidas a Deus Nosso Criador e Senhor – e de quem somos chamados a ser (no futuro) – colaboradores da Criação e da Redenção do gênero humano. A memória que se volta para os benefícios recebidos é uma memória carregada de afeto, apaixonada, que, a essas alturas, não deixa espaço para muitas palavras, mas sim para que diretamente a vontade seja afetada em plenitude.
Quando o presente parece nos diminuir, desanimar, minar as nossas energias e desfalecer a nossa fé, a recordação orante das maravilhas operadas por Deus na História (também na minha história) faz com que uma nova luz penetre na nossa vida, afugentando as trevas da desolação e dando novo alento à nossa caminhada espiritual.
Explica Zas Friz:
“Para descobrir-se, para auto revelar-se a si mesmo como uma identidade realizada, é preciso buscar a si mesmo. Isso será viável se a pessoa sabe “de onde vem” e “para onde vai”, se sabe a sua origem e o seu destino. Se tem memória disso. É um trabalho árduo “recordá-lo”, pois não basta recontar os anos passados, as amizades feitas e desfeitas, os lugares habitados e visitados. O recordar leva consigo uma exigência mais interior do que o mero relembrar coisas boas, os “bons velhos tempos” da infância e do colégio. A pessoa na verdade escava o seu passado em busca de encontrar na sua memória a sua “verdade”, a sua identidade”[1].
A memória desempenha um papel sumamente importante na vida de um cristão adulto. Com efeito, o exercício da memória deve ser uma forma de abertura a Deus, que nunca se contradiz, mas que conduz as pessoas com suma liberdade, não arbitrariamente, e com total coerência ao largo da vida. A abertura do espírito mediante a memória nos torna atentos a esta ação do Espírito em nosso interior e nos possibilita captar o sentido de tal ação.
Em segundo lugar, a memória é imprescindível para viver a dimensão histórica da fé, já que mediante a memória não só podemos observar a sucessão dos acontecimentos e seu sentido, mas também ela nos capacita a mantermos viva a experiência da ação de Deus em nosso coração.
Finalmente, a memória espiritual é uma capacidade e exercício próprios da nossa condição histórica. Quando nossa condição filial chegar à sua manifestação plena, “porque o veremos tal qual ele é” (1 Jo 3,2), viveremos já em um presente total e definitivo. Talvez então nossa memória se converta em uma gratidão eterna por aquilo que vivemos no tempo e já plenificado na eternidade com Ele. Será, pois, como dizia o poeta Pedro Casaldáliga, “uma lembrança agradecida”[2].
Não é por acaso que o exercício espiritual mais apreciado por Inácio, exercício de discernimento orante na presença e atuação do Senhor na nossa vida e da qualidade espiritual da nossa resposta a ela – o famoso “exame geral” (EE 43), o primeiro ponto, que abre e orienta todos os seguintes, fala de “dar graças a Deus pelos benefícios recebidos”. Comenta Santa Teresa de Ávila na sua “Vida” que “se não conhecemos o que recebemos, não despertamos para o amor” (Vida 10,4)[3].
Poderíamos nos perguntar qual é a finalidade desse “fazer memória”. Ou, em outras palavras, em que a potência da memória colabora para o bom êxito dos Exercícios Espirituais. Ora, para Inácio, o “trazer à memória os benefícios recebidos” é para que possamos dar graças por eles. Se não há ação de graças permanente, não há amor permanente. O maior pecado para Inácio é a ingratidão.
- CONTEMPLAÇÃO ADMIRADA
Essas duas palavras, sobre as quais nos debruçaremos aqui, convergem em uma tautologia. “Maravilha” e “contemplação” são duas atitudes profundas que tocam o ser humano no seu primeiro projeto, processo e acabamento, quando ele agradece ao real – Deus, a si mesmo, ao mundo e às outras pessoas – dá graças a elas como um mistério, e não como simples informações, dados frios a serem analisados ou usados.
Falar em “maravilha” e “contemplação” implica nos situarmos desde uma perspectiva totalmente diversa: somos tocados por aquilo que contemplamos, e esse toque provoca em nós uma profunda repercussão afetiva, uma vibração que nos envolve naquilo que contemplamos. O latim usava a expressão “mirabilia Dei” (= “maravilhas do Senhor”) para descrever a realidade vista aos olhos do agradecimento e da tomada de consciência da ação amorosa e providente de Deus por nós na História.
A “maravilha” nos coloca numa atitude de reverência e respeito profundos pelo outro (Outro, outros), trata-se de uma ação centrada neles, num movimento de saída de nós mesmos, implica uma “abertura para” a bondade, a verdade, a beleza do outro (Outro, outros). Somos como que hipnotizados, polarizados, chamados a uma atenção amorosa, a um olhar demorado e sem pressa, carregado de afeto, que vai repousando sobre cada evento, pessoa, relação. E nesse “olhar” fazemos a experiência que não somos nós que conduzimos nem provocamos a experiência, mas é o Senhor que tem a iniciativa de revelar-se e desvelar-se dos modos que Ele prefere e quando deseja.
Muitas vezes se falou da “Contemplação” como uma atitude totalmente passiva, beirando o total abandono. Mas nada de mais falso. A atitude requerida na “contemplação” é de uma ação vigorosa, a qual pondera em profundidade o outro – Deus, o ser humano, o mundo – voltando para eles totalmente o nosso coração (como Maria, totalmente absorta aos pés de Jesus na casa de Lázaro).
A realidade é tocada e reconhecida na sua dimensão de “dom”, de “presente”, ela é algo que está ali, objetiva, não-manipulável, para atestar que tudo que temos nós recebemos de alguém, de outro. E não somente as coisas, mas as pessoas, as ocasiões, as experiências. Tudo muda quando eu reconheço que as pessoas são um dom para mim e não uma ameaça.
Ainda mais: nós (eu) somos (sou) um presente, uma graça para os demais. Somos um presente que é dado. Recebemos de Deus tudo, antes de mais nada a própria vida.
A atitude da “maravilha” realça o primado da “alteridade”, da qualidade de dom e de graça que reveste cada pessoa, cada aspecto da realidade. Essa atitude provoca em nós o respeito e a reverência. Pede de nós a humildade cuidadosa no julgamento e nos convida a nos deixarmos surpreender por Deus. E isso pode se dar a qualquer momento e situação: a maravilha pode brotar a partir da flor mais simples, das mãos de um amigo, ou do poderoso Deus – se nós somos capazes de olhar realmente (do modo correto), correspondendo a esse dom com as nossas vidas.
Há um outro paradoxo aqui presente na “maravilha”: ela é ao mesmo tempo “intimidade” e “distância”, ao mesmo tempo “ternura” e “reverência”, ao mesmo tempo “fascinação” e “temor sagrado”. Se quisermos buscar alguém que nos introduza nesse novo mundo da “contemplação”, peçamos a uma criancinha que nos leve pela mão. Enquanto existirem crianças, a permanência da “maravilha” estará garantida no nosso planeta. A simplicidade inaugural do coração humano é celebrada pelo arregalar dos olhos das crianças diante da luz, de uma flor ou de qualquer outra coisa que para ela seja novidade: diante do som do trovão, por exemplo, abre-se um sorriso, os olhos de abrem e se voltam buscando os do adulto, as mãos se movem e há um deliciar-se total, envolvente, no silêncio, até que irrompe o grito de maravilha.
O ritmo acelerado do nosso mundo parece desacreditar-nos na possibilidade de vivermos experiências como essa da criança apenas descrita. A maioria das pessoas não tem tempo – real, psicológico, espiritual, humano para dedicar-se à maravilha e à contemplação. Sem contar ainda que para muita gente trata-se de algo irrelevante, supérfluo e sem nenhum proveito prático.
Mas suponhamos que nos dispomos a fazer essa experiência, animados pela famosa máxima inaciana de “encontrar Deus em todas as coisas”. Ora, para muitos é razoável e relativamente fácil assumir que Deus está em todas as coisas. Mas “encontrar Deus” em todas as coisas, senti-Lo, percebê-Lo, “tocá-Lo” e agradecer por essa Sua presença é certamente um negócio muito mais complexo.
E, no entanto, somente percebendo isso em cada momento, na contemplação ativa do mundo, faz com que nos tornemos verdadeiramente humanos, por meio de um encontro consciente e imediato com Deus. O que se trata de descobrir, na verdade, não é outra coisa do que o amor contemplativo de Deus por nós em cada criatura, amor que é capaz de atuar sempre de modo criativo, muito mais do que rotineiramente, penetrando fundo na pessoa. Pois somente o amor é capaz de dar Vida. Tomar consciência do amor de Deus por nós em tudo e em todas as coisas é uma consequência de um Amor que se encarnou e assumiu a nossa história humana e ali fez a sua morada. A Encarnação é um anúncio permanente que Deus não somente pode, mas de fato faz, escolhe nossos companheiros e nosso mundo como o lugar onde Ele deseja que nós o louvemos e o sirvamos.
Deus, presente em todas as coisas, não deveria ser exclamado com voz cansada e repetitivamente, mas sim sempre como um grito de admiração por cada descoberta da sua presença na nossa vida: “Deus, encontrado em todas as coisas: aqui e aqui e ali e acolá”! Mas não há uma contradição entre viver isso como um hábito, uma atitude constante e a surpresa de cada encontro?
Dizendo de outro modo: não é inverossímil propor uma “surpresa depois de outra” o resto da vida? Com o passar do tempo, não é natural que percamos o gosto pela aventura e nos acomodemos às experiências já conhecidas e “seguras”?
Quando Inácio colocou como último exercício a contemplação para alcançar amor, ele estava querendo indicar que temos que nos lançar numa aventura de amar tudo o que Deus ama, como Deus ama e com o seu Amor. Ora, amar o mundo com o Amor de Deus é nunca falhar em reverenciar e maravilhar-se.
Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
[1] Rossano Zas-Friz, La nostalgia de Dios en un mundo sin memoria, Manresa 74 (2002) 111.
[2] José-María Rambla, La memoria en el proceso humano-espiritual de Ignacio, Manresa 74 (2002) 135.
[3] Cf. Antonio Albuquerque, La memoria en los Ejercicios, Manresa 74 (2002) 138.